GERAL
Desafios e conquistas dos autistas: trabalho firme do MPAC assegura direitos e dignidade às famílias do interior do estado
Observar, analisar, relutar, buscar atendimento médico para investigar se, de fato, a suspeita está certa: é mais ou menos assim que acontece nas famílias que têm uma criança com sinais de Transtorno do Espectro Autista (TEA). No Brasil, segundo o Conselho Nacional de Saúde, estima-se que tenha, aproximadamente, 2 milhões de autistas. Já um levantamento feito pela Associação Família Azul do Acre (Asfac), o número pode se aproximar dos 19 mil, sendo 9 mil na capital do estado e 10 mil no interior.
Por ser uma condição que compromete três áreas importantes do desenvolvimento como: habilidades socioemocionais, atenção compartilhada e linguagem, há uma dificuldade enfrentada pelas famílias tanto para chegar a um diagnóstico, como conseguir atendimento.
Em Rio Branco, concentra-se o maior número de profissionais médicos, fisioterapeutas, psiquiatras, psicólogos, bem como é onde há mais aparelhos para realizar exames necessários para chegar a um diagnóstico. Com essa centralização, o interior e as famílias que lá vivem encontram dificuldades para a realização de atendimentos, realização de exames e consultas, inclusive, chegar a um diagnóstico.
Pauliete Nascimento Fernandes, 31 anos, é mãe do pequeno Paulo Luiz, de quatro anos, ambos moradores de Brasiléia, interior do Acre. A criança está em processo de exames e consultas para chegar a um diagnóstico.
A representante comercial se desdobra para finalizar o laudo do filho. Vendo a enorme burocracia pelo serviço público, resolveu se privar financeiramente para chegar ao diagnóstico e, mesmo buscando a rede privada, conta que não é fácil se deslocar do interior para a capital.
“Quando eu procurei a rede pública, havia uma lista de espera muito grande. Primeiro me encaminharam para o posto de saúde para fazer uma consulta. De lá, me disseram para ir no Caps [Centros de Atenção Psicossocial] e estava tudo muito demorado. Quando a gente recebe uma suspeita que nosso filho pode ter autismo vem aquele desespero. Como me disseram que era uma lista muito grande, uma demora gigantesca e eu teria que esperar abrir uma vaga em Rio Branco, resolvi fazer particular. Cada tempo perdido é muito precioso para eles. Então busquei a rede privada, mas também não foi fácil, pois gastamos bastante, porque tudo é na capital e tem um custo para nos locomovermos”, conta a mãe.
Ela relata a carência que o município tem de trazer profissionais e acredita que, se o Ministério Público do Estado do Acre (MPAC) continuar a parceria com as famílias e cobrar ainda mais das prefeituras para levar profissionais e exames em um intervalo de no mínimo de três em três meses, além de chegar mais rápido a um diagnóstico preciso, os tratamentos iniciarão cedo, trazendo assim mais qualidade de vida aos pacientes e familiares.
Diferente de Pauliete, a mãe do pequeno Théo Barbosa Andrade, de três anos, a senhora Neiriluce Ribeiro Barbosa Andrade, 33 anos, moradora do município de Epitaciolândia (AC), não trabalha fora e já tem o laudo do filho. Ela conta que conseguiu pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e que aguarda há pouco mais de oito meses pelo retorno com a neuropediatra na capital.
Neiriluce fala sobre a importância dos atendimentos na evolução do filho e destaca o atendimento que ele recebe pelo projeto da prefeitura de Epitaciolândia, o Anjo Azul, que atende mais de 100 crianças diagnosticadas com TEA.
“O Théo evoluiu bastante, graças a Deus, porque até março ele não falava praticamente nada. E, hoje em dia, já vejo ele formando frases, pedindo para tomar água, falando mamãe, papai, imita os sons de animais, conta de um até 20, conhece as letras do alfabeto”, destaca.
A mãe relatou ao Na Hora da Notícia que vê o MPAC muito atuante na causa autista no interior e contou uma situação ocorrida com outra mãe de uma criança com TEA.
“Uma mãe nos falou que estava na fila de uma lotérica com a criança com o crachá, identificando ser autista, e não deixaram ela passar na frente para ser atendida como prioridade. Ela ligou para o MPAC e eles, rapidamente, se dirigiram ao local e tudo foi resolvido. Muitas vezes a gente usa o crachá deles e as pessoas falam que eles não têm prioridade e tem que ficar esperando. Outro dia eu estava no posto e o Théo estava ruim, com problema de garganta e chorando muito. Perguntei se não tinha como passar ele na fila, porque ele era autista, e a moça respondeu que não que ele não tinha direito e depois ironizou que seria prioridade se tivesse uma crise ali”, relembrou.
Para essas mães, o poder público tem um papel essencial para transformar suas vidas e de seus filhos, e por isso a atuação do Ministério Público do Estado do Acre sempre foi extremamente importante para garantir o que é de direito a essas famílias.
Visando assegurar dignidade e cidadania a essas e tantas famílias no interior, como também na capital, o Ministério Público do Estado do Acre (MPAC) criou, em maio de 2022, o Grupo de Trabalho em defesa dos direitos das pessoas com Transtorno do Espectro Autista (GT-TEA).
Instituído pelo procurador-geral de Justiça, o doutor Danilo Lovisaro, e coordenado pela procuradora Gilcely Evangelista, o grupo, que oferece atenção as demandas aportadas no MP pelas mães e pais de filhos de Transtorno do Espectro Autista, é composto por cinco membros do MP ligados à saúde, educação e deficiência.
“Temos atribuições de atuar em todo o estado do Acre, levando esclarecimentos à população sobre os direitos das pessoas com TEA, realizando adesivaço e palestras. O fortalecimento da rede se compõe entre a saúde municipal e estadual, bem como a educação, assistência social, a sociedade civil organizada e perante os conselhos municipais e estaduais de saúde, educação, deficiente e assistência social”, explica a procuradora.
Gilcely diz ainda que o MPAC não faz distinção entre os agentes municipais e estaduais, razão pela qual estão viabilizando estratégias para o atendimento dessa comunidade de autista nos municípios. A procuradora ressalta que, ainda este ano, levarão para todos os municípios o programa “TEA: Eles não estão sós”.
O programa objetiva elaborar um diagnóstico sobre o nível de implementação da política estadual e municipal de saúde e assistência social voltada para pessoas com autismo no estado.
Mundo Singular, um ganho para famílias do Alto Acre
A Associação Mundo Singular, inaugurada em outubro de 2022, em Brasiléia, surgiu de um grupo de mães e pais que existe desde 2016. Segundo presidente da associação, Sheila Amaral, a princípio, a associação seria somente uma sede administrativa, porém a busca constante das mães por terapias, visto que o município é carente nesse atendimento multiprofissional, fez com o que já ardia no coração fosse colocado no papel e de lá tornou o sonho em realidade.
Vários parceiros ajudaram para colocar o projeto em prática e, hoje, o local conta com três salas que são utilizadas por uma psicóloga para trabalhar com método Denver – que é uma intervenção precoce de forma intensiva -, uma atendente terapêutica, uma psicóloga para trabalhar terapia cognitiva comportamental e fonoaudióloga. Em pleno funcionamento, a associação possui serviços com preços populares e possibilita para as famílias atendimentos antes só encontrados em Rio Branco. Além disso, também há uma comodidade e flexibilidade de horário para os pais.
Contudo, Sheila destaca que a luta é contínua já que o tratamento para pessoa com TEA se divide em alta, média e baixa complexidade, e cada esfera tem sua responsabilidade.
“A competência do município é média e baixa, que ainda não atende especificamente autistas. O acompanhamento multidisciplinar, que atende todas as demandas não é válido, o custo dessas terapias, mesmo pela associação, que atende a preço social, ainda é alto, visto a necessidade. Tem crianças que a recomendação semanal é de 20 horas de terapia. Nossa maior dificuldade, hoje, é ir à capital em busca de neuropediatra e exames de alta complexidade, por exemplo, um Bera [exame de audição] com sedação, o estado faz o exame, mas não tem profissional para fazer a sedação. E por aí vai! Tomografia, ressonância ou uma audiometria, um exame de X-FRÁGIL [que faz a análise do DNA para verificar a presença da Síndrome do X-Frágil, uma condição genética e hereditária que causa problemas de aprendizado e comportamento], que é de altíssima complexidade, pedido pelo geneticista, o estado não faz”, conta Amaral.
Atualmente, a associação conta com 59 inscritos e visa alcançar ainda mais famílias de Brasiléia e da região. Para se inscrever, o interessado pode contactar o WhatsApp (68) 99967-2249 e falar com Marcia Milandi, secretária da associação, ou através do e-mail mundosingularbrasileia@gmail.com, ou ainda ir pessoalmente à associação que fica localizada na rua Major Salinas, Centro, Brasiléia s/n. O valor da inscrição é de R$ 64,64 + R$ 24,24 da mensalidade, após isso, é pago somente a taxa de mensal.
Atuando como promotor do MPAC desde 2021, em Brasiléia e Assis Brasil, Juleandro Martins de Oliveira, conta que, ao assumir a promotoria, a primeira ação foi realizar um seminário onde foram convidados todos os representantes legais dos autistas, que foram identificados no município, com a finalidade de discutir o tema e levar informações. Para a conversa, também foram convidados profissionais da saúde, educação e direito.
“Além disso, já fizemos várias reuniões com o poder público. A prefeita, no ano passado, prometeu implementar os atendimentos com as terapias para os autistas, porém, infelizmente, ainda não implementou o atendimento com fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional, psicólogos, enfim, aquilo que é de responsabilidade da atenção básica”, disse Juleandro, que afirmou já ter determinado uma reunião com o secretário de saúde do município para saber qual o posicionamento da prefeitura em relação a essa situação.
Ainda segundo o promotor, se ainda assim não tiver uma data prevista para iniciar os atendimentos, o MPAC pretende chamar o município para assinar um termo de responsabilidade de conduta, para que se implemente essa política pública que é da sua responsabilidade, em um prazo razoável de 30 a 40 dias. Caso o município não aceite a proposta, o órgão irá judicializar, sendo essa a última via para abordar a questão.
Uma das vitórias do MPAC, em Brasiléia, foi conseguir, por meio de sugestão, a aprovação da Lei Municipal 1.128, que prevê políticas públicas para os autistas. A prefeita Fernanda Hassem sancionou a lei em 2 de maio de 2022. Com isso, além da do respaldo no âmbito federal e estadual, o autista tem o município para corroborar o sistema de garantia de seus direitos.
Para o promotor, seu trabalho não se limita a buscar garantias, apenas, na esfera municipal, por isso, fez reuniões com representantes da Secretaria de Estado de Saúde do Acre (Sesacre), e percebeu que o órgão também tem um projeto itinerante que contempla o interior do estado, levando profissionais qualificados para realizar atendimentos aos autistas.
“Não foi suficiente, pois sabemos que os autistas precisam de acompanhamento para a vida toda. Além das consultas periódicas, eles têm de fazer exames e, principalmente, fazer as terapias. Então é necessário a permanência dos profissionais no interior. A Sesacre fez esses atendimentos ano passado e, pelo que eu observei, a ideia foi atender os casos que tinham uma demanda reprimida, mas precisa ter continuidade. Vou me reunir, em breve, com o novo secretário estadual de saúde, Pedro Pascoal, sugerir e cobrar um atendimento regionalizado de média e alta complexidade, no Alto Acre”, disse.
O promotor destaca que o MPAC trabalha com parceria e o Mundo Singular veio para fortalecer a atuação especificamente nessa temática. E sempre que recebem demandas das mães dos associados, chamam o gestor do local reclamado para conversar e, também, a sociedade civil, que, segundo Juleandro, tem um papel muito importante, que é cobrar, e com a associação não é diferente, pois eles representam parcela da sociedade que precisa de atendimentos da rede pública.
A dignidade e os direitos assegurados
A pessoa com Transtorno do Espectro Autista (TEA) é amparada pela lei 13.146/2015 que tem como objetivo assegurar e promover os direitos e liberdades fundamentais da pessoa com deficiência. Além disso, conta com o apoio da Lei No 12.764/2012, que instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, e assegura diversos direitos, entre eles, o atendimento prioritário nos sistemas de saúde pública e privada.
Ao longo dos anos, algumas conquistas previstas em leis foram asseguradas às pessoas com TEA como, por exemplo, a criação da Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, da Lei n. 13.977/20, batizada como Lei Romeo Mion. Também foi instituída a Lei 13.861 de 2019 que estabelece a inclusão de perguntas sobre o Autismo no censo e que contribuirá para determinar quantas pessoas no Brasil apresentam esse transtorno e como elas estão distribuídas pelo território, obtendo, dessa forma, um número mais verdadeiro.
O autista também tem direito a fornecimento de medicação, passe livre e transporte interestadual, neste último caso, além de comprovar a deficiência, tem que ser comprovadamente carente, ter renda per capita de até um salário mínimo e assim terá direito ao benefício de gratuidade nas viagens interestaduais de ônibus, barco ou trem. Além disso, toda criança com TEA tem direito a educação e, se for o caso, com professor auxiliar ou assistente.
Ao exemplo do episódio na lotérica de Brasiléia, o promotor Juleandro disse que assim que o MPAC foi notificado, tomou providências cabíveis. Além disso, ele fala sobre como pretende trabalhar para reduzir esses casos e como a família pode fazer valer seus direitos violados.
“A gente pretende fazer campanhas, chamar profissionais qualificados para levar informações para as empresas privadas, órgãos públicos e qualificar os colaboradores. Assim eles saberão como identificar e atender o autista para que a pessoa não seja discriminada. Sabemos que, às vezes, não é preconceito, mas falta de conhecimento de como lidar com uma pessoa com TEA”, explica.
O promotor diz ainda que a família que perceber a violação do direito da pessoa com TEA, pode procurar o MPAC por um de seus canais. O contato geral que atende todo o estado do Acre é o e-mail ouvidoriageral@mpac.mp.br. Já para os casos em Brasiléia tem o contato telefônico (68) 3546-3916 ou ainda o endereço eletrônico brasileia@mpac.mp.br.