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RIO BRANCO
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GERAL

Como o IBAMA perdeu mais de bilhão de reais

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(Foto: Divulgação)

Em outubro de 2008, o Ibama autuou o empresário Delci Potrich por queimar ilegalmente 1.180 hectares de floresta nativa nas fazendas Sabiá e Jatobá, na zona rural de Feliz Natal (MT). Naquele ano, por essas e por outras infrações, o empresário figurou na lista dos cem maiores desmatadores da Amazônia, divulgada pelo Ministério do Meio Ambiente – o que não impediu os Potrich, gaúchos radicados no Norte do Mato Grosso, de venderem soja a gigantes do setor, como Amaggi, Cargill e Bunge, segundo relatório da ONG norte-americana Mighty Earth.

Pela infração ambiental, Potrich deveria ter desembolsado 8,8 milhões de reais em multa (cerca de 20 milhões, em valores corrigidos). Mas a autuação, registrada apenas em papel, simplesmente desapareceu dos arquivos do Ibama. Em 2012, a cobrança prescreveu, sem ter sido paga. O mesmo aconteceu com outras duas multas – uma de 3,1 milhões de reais, em 2005, e outra de 25 mil reais, em 2008 –, ambas por desmatamento. Somando as três multas que sumiram, a conta, em valores atuais, bate em 28,1 milhões. É dinheiro que deixou de ser recolhido aos cofres públicos.

Em outubro de 2008, o Ibama autuou o empresário Delci Potrich por queimar ilegalmente 1.180 hectares de floresta nativa nas fazendas Sabiá e Jatobá, na zona rural de Feliz Natal (MT). Naquele ano, por essas e por outras infrações, o empresário figurou na lista dos cem maiores desmatadores da Amazônia, divulgada pelo Ministério do Meio Ambiente – o que não impediu os Potrich, gaúchos radicados no Norte do Mato Grosso, de venderem soja a gigantes do setor, como Amaggi, Cargill e Bunge, segundo relatório da ONG norte-americana Mighty Earth.

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Pela infração ambiental, Potrich deveria ter desembolsado 8,8 milhões de reais em multa (cerca de 20 milhões, em valores corrigidos). Mas a autuação, registrada apenas em papel, simplesmente desapareceu dos arquivos do Ibama. Em 2012, a cobrança prescreveu, sem ter sido paga. O mesmo aconteceu com outras duas multas – uma de 3,1 milhões de reais, em 2005, e outra de 25 mil reais, em 2008 –, ambas por desmatamento. Somando as três multas que sumiram, a conta, em valores atuais, bate em 28,1 milhões. É dinheiro que deixou de ser recolhido aos cofres públicos.

A lei prevê que o Estado brasileiro não pode cobrar multas por tempo indeterminado – daí a prescrição das autuações contra Potrich. O mesmo, porém, não se aplica ao dano ambiental causado pelo infrator: a qualquer momento, as autoridades podem exigir, por meio de ação civil pública, que o crime seja reparado com indenização em dinheiro ou com a recuperação da área degradada. No caso de Potrich, o caso segue sem solução: documentos do Ibama obtidos pela piauí mostram que a autarquia ainda analisava, em 2022, como cobrar a reparação da área desmatada quinze anos atrás pelo empresário. Não se sabe o que aconteceu com essa nem com as outras duas multas. Sumiram dos escritórios do Ibama sem deixar vestígios.

Em outubro de 2008, o Ibama autuou o empresário Delci Potrich por queimar ilegalmente 1.180 hectares de floresta nativa nas fazendas Sabiá e Jatobá, na zona rural de Feliz Natal (MT). Naquele ano, por essas e por outras infrações, o empresário figurou na lista dos cem maiores desmatadores da Amazônia, divulgada pelo Ministério do Meio Ambiente – o que não impediu os Potrich, gaúchos radicados no Norte do Mato Grosso, de venderem soja a gigantes do setor, como Amaggi, Cargill e Bunge, segundo relatório da ONG norte-americana Mighty Earth.

Pela infração ambiental, Potrich deveria ter desembolsado 8,8 milhões de reais em multa (cerca de 20 milhões, em valores corrigidos). Mas a autuação, registrada apenas em papel, simplesmente desapareceu dos arquivos do Ibama. Em 2012, a cobrança prescreveu, sem ter sido paga. O mesmo aconteceu com outras duas multas – uma de 3,1 milhões de reais, em 2005, e outra de 25 mil reais, em 2008 –, ambas por desmatamento. Somando as três multas que sumiram, a conta, em valores atuais, bate em 28,1 milhões. É dinheiro que deixou de ser recolhido aos cofres públicos.

A lei prevê que o Estado brasileiro não pode cobrar multas por tempo indeterminado – daí a prescrição das autuações contra Potrich. O mesmo, porém, não se aplica ao dano ambiental causado pelo infrator: a qualquer momento, as autoridades podem exigir, por meio de ação civil pública, que o crime seja reparado com indenização em dinheiro ou com a recuperação da área degradada. No caso de Potrich, o caso segue sem solução: documentos do Ibama obtidos pela piauí mostram que a autarquia ainda analisava, em 2022, como cobrar a reparação da área desmatada quinze anos atrás pelo empresário. Não se sabe o que aconteceu com essa nem com as outras duas multas. Sumiram dos escritórios do Ibama sem deixar vestígios.

A família Potrich coleciona infrações ambientais. Um levantamento feito a partir de dados do Ibama mostra que já foram aplicadas ao menos outras quatro autuações contra os Potrich, a última delas em 2017. Procurados pela piauí, nem Delci Potrich nem seus advogados responderam aos pedidos de entrevista.

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Por causa do sumiço da papelada, a autuação de 8,8 milhões de reais feita pelo Ibama em 2008 se arrastou por anos na Justiça. Os advogados de Potrich alegaram que “não há como se defender de documentos que não constam dos autos e os quais se desconhece o seu teor [sic]”. Depois de quatro anos, o Ibama conseguiu reconstituir a multa a partir de informações que haviam sido lançadas no sistema de arrecadação da autarquia. Àquela altura, no entanto, o caso já havia prescrito.

Em outubro de 2008, o Ibama autuou o empresário Delci Potrich por queimar ilegalmente 1.180 hectares de floresta nativa nas fazendas Sabiá e Jatobá, na zona rural de Feliz Natal (MT). Naquele ano, por essas e por outras infrações, o empresário figurou na lista dos cem maiores desmatadores da Amazônia, divulgada pelo Ministério do Meio Ambiente – o que não impediu os Potrich, gaúchos radicados no Norte do Mato Grosso, de venderem soja a gigantes do setor, como Amaggi, Cargill e Bunge, segundo relatório da ONG norte-americana Mighty Earth.

Pela infração ambiental, Potrich deveria ter desembolsado 8,8 milhões de reais em multa (cerca de 20 milhões, em valores corrigidos). Mas a autuação, registrada apenas em papel, simplesmente desapareceu dos arquivos do Ibama. Em 2012, a cobrança prescreveu, sem ter sido paga. O mesmo aconteceu com outras duas multas – uma de 3,1 milhões de reais, em 2005, e outra de 25 mil reais, em 2008 –, ambas por desmatamento. Somando as três multas que sumiram, a conta, em valores atuais, bate em 28,1 milhões. É dinheiro que deixou de ser recolhido aos cofres públicos.

A lei prevê que o Estado brasileiro não pode cobrar multas por tempo indeterminado – daí a prescrição das autuações contra Potrich. O mesmo, porém, não se aplica ao dano ambiental causado pelo infrator: a qualquer momento, as autoridades podem exigir, por meio de ação civil pública, que o crime seja reparado com indenização em dinheiro ou com a recuperação da área degradada. No caso de Potrich, o caso segue sem solução: documentos do Ibama obtidos pela piauí mostram que a autarquia ainda analisava, em 2022, como cobrar a reparação da área desmatada quinze anos atrás pelo empresário. Não se sabe o que aconteceu com essa nem com as outras duas multas. Sumiram dos escritórios do Ibama sem deixar vestígios.

A família Potrich coleciona infrações ambientais. Um levantamento feito a partir de dados do Ibama mostra que já foram aplicadas ao menos outras quatro autuações contra os Potrich, a última delas em 2017. Procurados pela piauí, nem Delci Potrich nem seus advogados responderam aos pedidos de entrevista.

Por causa do sumiço da papelada, a autuação de 8,8 milhões de reais feita pelo Ibama em 2008 se arrastou por anos na Justiça. Os advogados de Potrich alegaram que “não há como se defender de documentos que não constam dos autos e os quais se desconhece o seu teor [sic]”. Depois de quatro anos, o Ibama conseguiu reconstituir a multa a partir de informações que haviam sido lançadas no sistema de arrecadação da autarquia. Àquela altura, no entanto, o caso já havia prescrito.

O Ibama lida com uma avalanche de casos de prescrição todos os anos. A piauí teve acesso a dados obtidos pelo projeto Data Fixers, em parceria com a agência de dados Fiquem Sabendo, que mostram que aproximadamente 1,3 bilhão de reais deixaram de ser arrecadados pelo Ibama em 65,3 mil processos que, nos últimos 22 anos, acabaram prescritos. Na maioria dos casos, isso acontece porque faltam servidores e recursos em quantidade suficiente para dar conta de tantos processos. As multas ficam paradas durante anos, até que prescrevem.

Mas é provável que o valor seja ainda maior. Isso porque o cálculo de 1,3 bilhão só considera os casos em que o Ibama já reconheceu a prescrição. Há milhares de outras infrações registradas há anos que até agora não foram analisadas pela autarquia. Boa parte delas só existe em papel, o que dificulta o monitoramento dos prazos de prescrição – e, pior, possibilita que elas simplesmente desapareçam sem deixar rastros, como no caso de Delci Potrich.

piauí teve acesso a documentos de multas não digitalizados em pelo menos treze unidades estaduais do Ibama. Somadas, essas treze unidades admitiram ter cerca de 77,5 mil autuações em papel, sem cópia digital. “Pode-se supor que os processos devam estar prescritos em quase sua totalidade”, disse a superintendência do Ibama no Pará, ao ser indagada sobre os mais de 14 mil processos não digitalizados no estado. No Piauí, há 1,9 mil autos de infração não digitalizados, armazenados em prateleiras (ver imagem abaixo). A superintendência do Ibama no Piauí também não soube dizer quantos desses processos já prescreveram.

Superintendência do Ibama no Piauí tem cerca de 1,9 mil processos não digitalizados — Foto: Ibama/Lei de Acesso à Informação (LAI)

 

A falta de digitalização deveria ser um problema do passado. Assim como outros órgãos federais vinham fazendo desde 2015, o Ibama aderiu, em 2017, a um sistema eletrônico que garante que todo documento tenha sempre uma versão digital. Em 2018, no governo de Michel Temer, foi criado um projeto para digitalizar todos os documentos antigos que ainda existiam somente em formato físico. Mas, tão logo Jair Bolsonaro assumiu a Presidência, promovendo um desmonte completo dos órgãos de fiscalização ambiental, o projeto foi para a gaveta e de lá não mais saiu.

A paralisia do projeto facilitou a “passagem da boiada”, na definição imortal do então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. “Ele encheu a direção do Ibama de policiais militares que não sabiam nada de gestão. Esse desastre se refletiu nos processos administrativos”, diz um servidor que participou das tratativas para a digitalização do acervo do Ibama. Ele não quis ser identificado por temer retaliações na autarquia.

Para punir uma infração ambiental, o Ibama cumpre as seguintes etapas: identificação da infração, autuação, julgamento em duas instâncias (a superintendência estadual e a presidência) e, por último, a cobrança da multa. No decorrer do processo, há três regras que podem fazer o delito prescrever. A primeira delas determina que, a partir da data em que ocorre a irregularidade, o Ibama tem até cinco anos para identificar e autuar o infrator. A segunda estabelece que o processo derivado dessa autuação não pode ficar mais do que três anos sem ser movimentado (esse é o tipo de prescrição mais comum em processos físicos, que são difíceis de monitorar. Além disso, há alguns anos a direção do Ibama entende que despachos ordinários, de “mero expediente”, não contam como movimentação do processo, o que contribui para que prescrições desse tipo aconteçam com mais frequência). Por fim, a terceira regra diz que, depois de julgada a infração, o Estado tem até cinco anos para cobrar a multa. Se o Ibama extrapolar um desses três prazos, não há o que fazer: o caso é extinto e a multa prescreve.

A dificuldade de lidar com um enorme acervo não digitalizado, além da escassez de pessoal e de verbas para tocar os processos, tem feito com que o Ibama frequentemente perca esses prazos – e, com isso, deixe de arrecadar o dinheiro das multas. Uma auditoria da CGU, de 2018, já alertava para o “elevado tempo de julgamento e conclusão dos processos de autos de infração” e o consequente “risco da extinção de processos em decorrência da prescrição”.

Servidores do Ibama ouvidos pela piauí estimam que, atualmente, apenas 20% das multas são pagas. A grande maioria delas (em torno de 90%) são de pequenos valores, até 10 mil reais. Mas são os maiores devedores que mais engrossam a fila dos impunes. “Para os grandes infratores ambientais, sai mais barato pagar um advogado para protelar o processo até a prescrição”, explica um servidor, que pediu para não ser identificado por não ter autorização formal do Ibama para dar entrevistas.

Na Superintendência do Ibama no Mato Grosso, onde o caso de Delci Potrich foi registrado, havia, até setembro de 2022, um acervo físico de mais de mil metros lineares de documentos de infrações ambientais (posteriormente, uma força-tarefa do Ibama reduziu esse volume, mas o órgão não soube informar a quantidade atual de documentos no local). Uma papelada sem fim, ao ponto de ser calculada em metros lineares – medida que considera a dimensão de cada espaço ocupado de uma prateleira com documentos, ignorando os espaços vazios.

Em outubro de 2008, o Ibama autuou o empresário Delci Potrich por queimar ilegalmente 1.180 hectares de floresta nativa nas fazendas Sabiá e Jatobá, na zona rural de Feliz Natal (MT). Naquele ano, por essas e por outras infrações, o empresário figurou na lista dos cem maiores desmatadores da Amazônia, divulgada pelo Ministério do Meio Ambiente – o que não impediu os Potrich, gaúchos radicados no Norte do Mato Grosso, de venderem soja a gigantes do setor, como Amaggi, Cargill e Bunge, segundo relatório da ONG norte-americana Mighty Earth.

Pela infração ambiental, Potrich deveria ter desembolsado 8,8 milhões de reais em multa (cerca de 20 milhões, em valores corrigidos). Mas a autuação, registrada apenas em papel, simplesmente desapareceu dos arquivos do Ibama. Em 2012, a cobrança prescreveu, sem ter sido paga. O mesmo aconteceu com outras duas multas – uma de 3,1 milhões de reais, em 2005, e outra de 25 mil reais, em 2008 –, ambas por desmatamento. Somando as três multas que sumiram, a conta, em valores atuais, bate em 28,1 milhões. É dinheiro que deixou de ser recolhido aos cofres públicos.

A lei prevê que o Estado brasileiro não pode cobrar multas por tempo indeterminado – daí a prescrição das autuações contra Potrich. O mesmo, porém, não se aplica ao dano ambiental causado pelo infrator: a qualquer momento, as autoridades podem exigir, por meio de ação civil pública, que o crime seja reparado com indenização em dinheiro ou com a recuperação da área degradada. No caso de Potrich, o caso segue sem solução: documentos do Ibama obtidos pela piauí mostram que a autarquia ainda analisava, em 2022, como cobrar a reparação da área desmatada quinze anos atrás pelo empresário. Não se sabe o que aconteceu com essa nem com as outras duas multas. Sumiram dos escritórios do Ibama sem deixar vestígios.

A família Potrich coleciona infrações ambientais. Um levantamento feito a partir de dados do Ibama mostra que já foram aplicadas ao menos outras quatro autuações contra os Potrich, a última delas em 2017. Procurados pela piauí, nem Delci Potrich nem seus advogados responderam aos pedidos de entrevista.

Por causa do sumiço da papelada, a autuação de 8,8 milhões de reais feita pelo Ibama em 2008 se arrastou por anos na Justiça. Os advogados de Potrich alegaram que “não há como se defender de documentos que não constam dos autos e os quais se desconhece o seu teor [sic]”. Depois de quatro anos, o Ibama conseguiu reconstituir a multa a partir de informações que haviam sido lançadas no sistema de arrecadação da autarquia. Àquela altura, no entanto, o caso já havia prescrito.

O Ibama lida com uma avalanche de casos de prescrição todos os anos. A piauí teve acesso a dados obtidos pelo projeto Data Fixers, em parceria com a agência de dados Fiquem Sabendo, que mostram que aproximadamente 1,3 bilhão de reais deixaram de ser arrecadados pelo Ibama em 65,3 mil processos que, nos últimos 22 anos, acabaram prescritos. Na maioria dos casos, isso acontece porque faltam servidores e recursos em quantidade suficiente para dar conta de tantos processos. As multas ficam paradas durante anos, até que prescrevem.

Mas é provável que o valor seja ainda maior. Isso porque o cálculo de 1,3 bilhão só considera os casos em que o Ibama já reconheceu a prescrição. Há milhares de outras infrações registradas há anos que até agora não foram analisadas pela autarquia. Boa parte delas só existe em papel, o que dificulta o monitoramento dos prazos de prescrição – e, pior, possibilita que elas simplesmente desapareçam sem deixar rastros, como no caso de Delci Potrich.

piauí teve acesso a documentos de multas não digitalizados em pelo menos treze unidades estaduais do Ibama. Somadas, essas treze unidades admitiram ter cerca de 77,5 mil autuações em papel, sem cópia digital. “Pode-se supor que os processos devam estar prescritos em quase sua totalidade”, disse a superintendência do Ibama no Pará, ao ser indagada sobre os mais de 14 mil processos não digitalizados no estado. No Piauí, há 1,9 mil autos de infração não digitalizados, armazenados em prateleiras (ver imagem abaixo). A superintendência do Ibama no Piauí também não soube dizer quantos desses processos já prescreveram.

Superintendência do Ibama no Piauí tem cerca de 1,9 mil processos não digitalizados — Foto: Ibama/Lei de Acesso à Informação (LAI)

A falta de digitalização deveria ser um problema do passado. Assim como outros órgãos federais vinham fazendo desde 2015, o Ibama aderiu, em 2017, a um sistema eletrônico que garante que todo documento tenha sempre uma versão digital. Em 2018, no governo de Michel Temer, foi criado um projeto para digitalizar todos os documentos antigos que ainda existiam somente em formato físico. Mas, tão logo Jair Bolsonaro assumiu a Presidência, promovendo um desmonte completo dos órgãos de fiscalização ambiental, o projeto foi para a gaveta e de lá não mais saiu.

A paralisia do projeto facilitou a “passagem da boiada”, na definição imortal do então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. “Ele encheu a direção do Ibama de policiais militares que não sabiam nada de gestão. Esse desastre se refletiu nos processos administrativos”, diz um servidor que participou das tratativas para a digitalização do acervo do Ibama. Ele não quis ser identificado por temer retaliações na autarquia.

Para punir uma infração ambiental, o Ibama cumpre as seguintes etapas: identificação da infração, autuação, julgamento em duas instâncias (a superintendência estadual e a presidência) e, por último, a cobrança da multa. No decorrer do processo, há três regras que podem fazer o delito prescrever. A primeira delas determina que, a partir da data em que ocorre a irregularidade, o Ibama tem até cinco anos para identificar e autuar o infrator. A segunda estabelece que o processo derivado dessa autuação não pode ficar mais do que três anos sem ser movimentado (esse é o tipo de prescrição mais comum em processos físicos, que são difíceis de monitorar. Além disso, há alguns anos a direção do Ibama entende que despachos ordinários, de “mero expediente”, não contam como movimentação do processo, o que contribui para que prescrições desse tipo aconteçam com mais frequência). Por fim, a terceira regra diz que, depois de julgada a infração, o Estado tem até cinco anos para cobrar a multa. Se o Ibama extrapolar um desses três prazos, não há o que fazer: o caso é extinto e a multa prescreve.

A dificuldade de lidar com um enorme acervo não digitalizado, além da escassez de pessoal e de verbas para tocar os processos, tem feito com que o Ibama frequentemente perca esses prazos – e, com isso, deixe de arrecadar o dinheiro das multas. Uma auditoria da CGU, de 2018, já alertava para o “elevado tempo de julgamento e conclusão dos processos de autos de infração” e o consequente “risco da extinção de processos em decorrência da prescrição”.

Servidores do Ibama ouvidos pela piauí estimam que, atualmente, apenas 20% das multas são pagas. A grande maioria delas (em torno de 90%) são de pequenos valores, até 10 mil reais. Mas são os maiores devedores que mais engrossam a fila dos impunes. “Para os grandes infratores ambientais, sai mais barato pagar um advogado para protelar o processo até a prescrição”, explica um servidor, que pediu para não ser identificado por não ter autorização formal do Ibama para dar entrevistas.

Na Superintendência do Ibama no Mato Grosso, onde o caso de Delci Potrich foi registrado, havia, até setembro de 2022, um acervo físico de mais de mil metros lineares de documentos de infrações ambientais (posteriormente, uma força-tarefa do Ibama reduziu esse volume, mas o órgão não soube informar a quantidade atual de documentos no local). Uma papelada sem fim, ao ponto de ser calculada em metros lineares – medida que considera a dimensão de cada espaço ocupado de uma prateleira com documentos, ignorando os espaços vazios.

Dispostos em semicírculo em uma área de mata fechada nos fundos da sede do Ibama em Cuiabá, sujeitos a sol e chuva, dezoito contêineres guardam milhares de caixas empoeiradas contendo documentos diversos, como autos de infração, alguns deles com valores milionários. Em alguns dos contêineres, as pilhas se amontoam sem nenhuma organização. Em outros, dividem espaço com objetos apreendidos, como motores de barco ou peles de animais. Em dias muito quentes, o que não é raro na capital mato-grossense, os contêineres viram estufas. Parte dos papéis foi corroída por traças e cupins.

Cada documento destruído ou desaparecido colabora para deixar impunes os infratores, em um estado que, historicamente, sempre registrou alto índice de desmatamento. Atualmente, Mato Grosso é o terceiro estado que mais destrói a Floresta Amazônica: no primeiro semestre de 2022, foram 845 km² de devastação. Só perde para Amazonas e Pará.

Um dos contêineres em Cuiabá com processos não digitalizados — Foto: Ibama/Lei de Acesso à Informação (LAI)

 

A papelada existe não só em Cuiabá, mas também em unidades menores do Ibama em Mato Grosso, como em Juína e Sinop. Dentro das pastas, segundo o Ibama, há autuações na fase da execução fiscal, contendo medidas como embargo, apreensão ou reparação do dano ambiental.

“Muitos processos ficam parados, na maior parte das vezes por desorganização e falta de pessoal. É um problema de gestão”, diz um servidor que atuou por uma década na superintendência do Ibama no Mato Grosso e acompanhou o caso de Potrich. “É desanimador ver que acabam com o seu trabalho [de fiscalização] assim.” Ele segue no Ibama, agora em outro estado, e pediu anonimato por não ter autorização para dar entrevistas.

Em despachos internos, o Ibama reconhece a precariedade do armazenamento dos papéis. A autarquia registrou, num ofício de março do ano passado, que, na unidade de Barra do Garças (MT), muitos documentos “têm mais de 30 anos” e “se encontram inclusive corroídos por traças e cupins”. Em 2021, foi necessário fazer a dedetização no local, e o Ibama acabou mudando de prédio para buscar melhores condições de guardar a papelada.

O armazenamento de tantos documentos não apenas põe em risco os processos, como gera gastos consideráveis: os dezoito contêineres em Cuiabá custam 136 mil reais por ano. O Ibama afirma que a maioria das multas que estão nos arquivos não digitalizados já prescreveu, mas diz não saber quantas são, nem o valor das multas, muito menos se o dano ambiental desses casos foi reparado.

piauí pediu acesso aos contêineres em Cuiabá para avaliar presencialmente a papelada, mas o pedido foi rejeitado pelo Ibama. A revista fez então pedido judicial, mas novamente o acesso foi negado. “Os processos administrativos ali mantidos contêm dados pessoais de autuados e interessados. Assim, possibilitar o acesso dos impetrantes ao interior dos contêineres e a manipulação dos documentos ali constantes é violar a Lei Geral de Proteção de Dados [LGPD]”, argumentou a juíza Ivani Silva da Luz, da 6ª Vara Federal de Brasília.

O risco de não digitalizar multas e processos não se limita à deterioração natural dos papéis – há também um histórico de desaparecimento criminoso de documentos. Na mesma época em que a multa contra Delci Potrich sumiu da papelada do Ibama, cerca de quatrocentas outras também desapareceram. Em todos esses casos, os autos acabaram prescrevendo. Só aí, o prejuízo estimado pelo Ibama foi de 19,7 milhões de reais.

Em 2012, a Polícia Federal instaurou um inquérito para apurar tanto sumiço. O chefe do setor de arrecadação do Ibama disse à polícia, na época, que não havia sequer como saber o dia em que aconteceu o desaparecimento. Isso porque o Ibama demorou algum tempo para notar que os papéis dos quatrocentos processos não estavam mais lá. A área de onde se supõe que os documentos foram extraviados não tinha circuito interno de câmeras. O inquérito foi arquivado sem encontrar culpados.

Além do sumiço de documentos, já houve destruição de provas de atos de corrupção praticados por servidores. Em novembro de 2004, quando a PF, o Ministério Público Federal e o Ibama investigavam um amplo esquema de pagamento de propina a fiscais do Ibama – que, em troca, faziam vista grossa para a extração ilegal de madeira na Amazônia –, um incêndio destruiu completamente o escritório da autarquia em Guarantã do Norte, interior de Mato Grosso, onde estavam guardadas provas do esquema. Sete meses mais tarde, 127 pessoas foram presas na Operação Curupira, incluindo o gerente-executivo do Ibama no estado, Hugo José Scheuer Werle, e o então diretor de Florestas do órgão em Brasília, Antônio Carlos Hummel.

Outro escândalo aconteceu pouco depois, em 2006. O fiscal do Ibama Luiz Carlos Prestes Leite autuou a Empresa de Mineração Aripuanã em 1 milhão de reais, em valores da época, por extração irregular de calcário em uma das fazendas da empresa, também no interior do Mato Grosso. Além da multa, a área foi embargada. No ano seguinte, a empresa conseguiu reverter o embargo, mas, antes que fosse formalmente notificada dessa decisão, o processo físico desapareceu dos escaninhos do Ibama. O caso ficou paralisado por anos. Em setembro de 2010, Leite se encontrou com um engenheiro da mineradora no estacionamento do Ibama em Cuiabá. Àquela altura, após correções, a multa já chegava a 2 milhões de reais. O fiscal mostrou a ele a notificação do Ibama, documento de que a empresa precisava para voltar a operar na fazenda, e se dispôs a entregar o papel, assim como todo o processo de autuação, em troca de propina.

“E aí, como é que faz pra acertar?”, disse Leite. O engenheiro desconversou. O fiscal, dali em diante, passou a pressionar não apenas ele, mas também uma das sócias da mineradora, Júlia Tretel Penço. Ela resolveu procurar a PF e relatar o que vinha ocorrendo. Foi orientada pelos policiais a dar corda para o servidor, conversando com ele pessoalmente e por telefone. Os dois combinaram de se reunir na sede da empresa na manhã de 19 de janeiro de 2011. O fiscal não sabia, mas Penço escondia um microfone na roupa, instalado pelos policiais federais. Leite deixou claro que, ao propor o esquema criminoso, falava em nome de um grupo de fiscais. Deu-se o seguinte diálogo:

Quando você fala que esse pessoal pode dar jeito [na multa e no embargo], como assim você fala? — perguntou a empresária.

– Eles entregam pra você o processo, aí queima, você dá fim nela [multa] — respondeu o fiscal.

– E o que que é que eles pediram?

– Eles pediram oitenta [mil reais].

– E aí, eu vou ter certeza que não vou ter problema depois?

– Não, esse processo acabou – arrematou o fiscal.

Em outubro de 2008, o Ibama autuou o empresário Delci Potrich por queimar ilegalmente 1.180 hectares de floresta nativa nas fazendas Sabiá e Jatobá, na zona rural de Feliz Natal (MT). Naquele ano, por essas e por outras infrações, o empresário figurou na lista dos cem maiores desmatadores da Amazônia, divulgada pelo Ministério do Meio Ambiente – o que não impediu os Potrich, gaúchos radicados no Norte do Mato Grosso, de venderem soja a gigantes do setor, como Amaggi, Cargill e Bunge, segundo relatório da ONG norte-americana Mighty Earth.

Pela infração ambiental, Potrich deveria ter desembolsado 8,8 milhões de reais em multa (cerca de 20 milhões, em valores corrigidos). Mas a autuação, registrada apenas em papel, simplesmente desapareceu dos arquivos do Ibama. Em 2012, a cobrança prescreveu, sem ter sido paga. O mesmo aconteceu com outras duas multas – uma de 3,1 milhões de reais, em 2005, e outra de 25 mil reais, em 2008 –, ambas por desmatamento. Somando as três multas que sumiram, a conta, em valores atuais, bate em 28,1 milhões. É dinheiro que deixou de ser recolhido aos cofres públicos.

A lei prevê que o Estado brasileiro não pode cobrar multas por tempo indeterminado – daí a prescrição das autuações contra Potrich. O mesmo, porém, não se aplica ao dano ambiental causado pelo infrator: a qualquer momento, as autoridades podem exigir, por meio de ação civil pública, que o crime seja reparado com indenização em dinheiro ou com a recuperação da área degradada. No caso de Potrich, o caso segue sem solução: documentos do Ibama obtidos pela piauí mostram que a autarquia ainda analisava, em 2022, como cobrar a reparação da área desmatada quinze anos atrás pelo empresário. Não se sabe o que aconteceu com essa nem com as outras duas multas. Sumiram dos escritórios do Ibama sem deixar vestígios.

A família Potrich coleciona infrações ambientais. Um levantamento feito a partir de dados do Ibama mostra que já foram aplicadas ao menos outras quatro autuações contra os Potrich, a última delas em 2017. Procurados pela piauí, nem Delci Potrich nem seus advogados responderam aos pedidos de entrevista.

Por causa do sumiço da papelada, a autuação de 8,8 milhões de reais feita pelo Ibama em 2008 se arrastou por anos na Justiça. Os advogados de Potrich alegaram que “não há como se defender de documentos que não constam dos autos e os quais se desconhece o seu teor [sic]”. Depois de quatro anos, o Ibama conseguiu reconstituir a multa a partir de informações que haviam sido lançadas no sistema de arrecadação da autarquia. Àquela altura, no entanto, o caso já havia prescrito.

O Ibama lida com uma avalanche de casos de prescrição todos os anos. A piauí teve acesso a dados obtidos pelo projeto Data Fixers, em parceria com a agência de dados Fiquem Sabendo, que mostram que aproximadamente 1,3 bilhão de reais deixaram de ser arrecadados pelo Ibama em 65,3 mil processos que, nos últimos 22 anos, acabaram prescritos. Na maioria dos casos, isso acontece porque faltam servidores e recursos em quantidade suficiente para dar conta de tantos processos. As multas ficam paradas durante anos, até que prescrevem.

Mas é provável que o valor seja ainda maior. Isso porque o cálculo de 1,3 bilhão só considera os casos em que o Ibama já reconheceu a prescrição. Há milhares de outras infrações registradas há anos que até agora não foram analisadas pela autarquia. Boa parte delas só existe em papel, o que dificulta o monitoramento dos prazos de prescrição – e, pior, possibilita que elas simplesmente desapareçam sem deixar rastros, como no caso de Delci Potrich.

piauí teve acesso a documentos de multas não digitalizados em pelo menos treze unidades estaduais do Ibama. Somadas, essas treze unidades admitiram ter cerca de 77,5 mil autuações em papel, sem cópia digital. “Pode-se supor que os processos devam estar prescritos em quase sua totalidade”, disse a superintendência do Ibama no Pará, ao ser indagada sobre os mais de 14 mil processos não digitalizados no estado. No Piauí, há 1,9 mil autos de infração não digitalizados, armazenados em prateleiras (ver imagem abaixo). A superintendência do Ibama no Piauí também não soube dizer quantos desses processos já prescreveram.

Superintendência do Ibama no Piauí tem cerca de 1,9 mil processos não digitalizados — Foto: Ibama/Lei de Acesso à Informação (LAI)

 

A falta de digitalização deveria ser um problema do passado. Assim como outros órgãos federais vinham fazendo desde 2015, o Ibama aderiu, em 2017, a um sistema eletrônico que garante que todo documento tenha sempre uma versão digital. Em 2018, no governo de Michel Temer, foi criado um projeto para digitalizar todos os documentos antigos que ainda existiam somente em formato físico. Mas, tão logo Jair Bolsonaro assumiu a Presidência, promovendo um desmonte completo dos órgãos de fiscalização ambiental, o projeto foi para a gaveta e de lá não mais saiu.

A paralisia do projeto facilitou a “passagem da boiada”, na definição imortal do então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. “Ele encheu a direção do Ibama de policiais militares que não sabiam nada de gestão. Esse desastre se refletiu nos processos administrativos”, diz um servidor que participou das tratativas para a digitalização do acervo do Ibama. Ele não quis ser identificado por temer retaliações na autarquia.

Para punir uma infração ambiental, o Ibama cumpre as seguintes etapas: identificação da infração, autuação, julgamento em duas instâncias (a superintendência estadual e a presidência) e, por último, a cobrança da multa. No decorrer do processo, há três regras que podem fazer o delito prescrever. A primeira delas determina que, a partir da data em que ocorre a irregularidade, o Ibama tem até cinco anos para identificar e autuar o infrator. A segunda estabelece que o processo derivado dessa autuação não pode ficar mais do que três anos sem ser movimentado (esse é o tipo de prescrição mais comum em processos físicos, que são difíceis de monitorar. Além disso, há alguns anos a direção do Ibama entende que despachos ordinários, de “mero expediente”, não contam como movimentação do processo, o que contribui para que prescrições desse tipo aconteçam com mais frequência). Por fim, a terceira regra diz que, depois de julgada a infração, o Estado tem até cinco anos para cobrar a multa. Se o Ibama extrapolar um desses três prazos, não há o que fazer: o caso é extinto e a multa prescreve.

A dificuldade de lidar com um enorme acervo não digitalizado, além da escassez de pessoal e de verbas para tocar os processos, tem feito com que o Ibama frequentemente perca esses prazos – e, com isso, deixe de arrecadar o dinheiro das multas. Uma auditoria da CGU, de 2018, já alertava para o “elevado tempo de julgamento e conclusão dos processos de autos de infração” e o consequente “risco da extinção de processos em decorrência da prescrição”.

Servidores do Ibama ouvidos pela piauí estimam que, atualmente, apenas 20% das multas são pagas. A grande maioria delas (em torno de 90%) são de pequenos valores, até 10 mil reais. Mas são os maiores devedores que mais engrossam a fila dos impunes. “Para os grandes infratores ambientais, sai mais barato pagar um advogado para protelar o processo até a prescrição”, explica um servidor, que pediu para não ser identificado por não ter autorização formal do Ibama para dar entrevistas.

Na Superintendência do Ibama no Mato Grosso, onde o caso de Delci Potrich foi registrado, havia, até setembro de 2022, um acervo físico de mais de mil metros lineares de documentos de infrações ambientais (posteriormente, uma força-tarefa do Ibama reduziu esse volume, mas o órgão não soube informar a quantidade atual de documentos no local). Uma papelada sem fim, ao ponto de ser calculada em metros lineares – medida que considera a dimensão de cada espaço ocupado de uma prateleira com documentos, ignorando os espaços vazios.

Dispostos em semicírculo em uma área de mata fechada nos fundos da sede do Ibama em Cuiabá, sujeitos a sol e chuva, dezoito contêineres guardam milhares de caixas empoeiradas contendo documentos diversos, como autos de infração, alguns deles com valores milionários. Em alguns dos contêineres, as pilhas se amontoam sem nenhuma organização. Em outros, dividem espaço com objetos apreendidos, como motores de barco ou peles de animais. Em dias muito quentes, o que não é raro na capital mato-grossense, os contêineres viram estufas. Parte dos papéis foi corroída por traças e cupins.

Cada documento destruído ou desaparecido colabora para deixar impunes os infratores, em um estado que, historicamente, sempre registrou alto índice de desmatamento. Atualmente, Mato Grosso é o terceiro estado que mais destrói a Floresta Amazônica: no primeiro semestre de 2022, foram 845 km² de devastação. Só perde para Amazonas e Pará.

Um dos contêineres em Cuiabá com processos não digitalizados — Foto: Ibama/Lei de Acesso à Informação (LAI)

 

A papelada existe não só em Cuiabá, mas também em unidades menores do Ibama em Mato Grosso, como em Juína e Sinop. Dentro das pastas, segundo o Ibama, há autuações na fase da execução fiscal, contendo medidas como embargo, apreensão ou reparação do dano ambiental.

“Muitos processos ficam parados, na maior parte das vezes por desorganização e falta de pessoal. É um problema de gestão”, diz um servidor que atuou por uma década na superintendência do Ibama no Mato Grosso e acompanhou o caso de Potrich. “É desanimador ver que acabam com o seu trabalho [de fiscalização] assim.” Ele segue no Ibama, agora em outro estado, e pediu anonimato por não ter autorização para dar entrevistas.

Em despachos internos, o Ibama reconhece a precariedade do armazenamento dos papéis. A autarquia registrou, num ofício de março do ano passado, que, na unidade de Barra do Garças (MT), muitos documentos “têm mais de 30 anos” e “se encontram inclusive corroídos por traças e cupins”. Em 2021, foi necessário fazer a dedetização no local, e o Ibama acabou mudando de prédio para buscar melhores condições de guardar a papelada.

O armazenamento de tantos documentos não apenas põe em risco os processos, como gera gastos consideráveis: os dezoito contêineres em Cuiabá custam 136 mil reais por ano. O Ibama afirma que a maioria das multas que estão nos arquivos não digitalizados já prescreveu, mas diz não saber quantas são, nem o valor das multas, muito menos se o dano ambiental desses casos foi reparado.

piauí pediu acesso aos contêineres em Cuiabá para avaliar presencialmente a papelada, mas o pedido foi rejeitado pelo Ibama. A revista fez então pedido judicial, mas novamente o acesso foi negado. “Os processos administrativos ali mantidos contêm dados pessoais de autuados e interessados. Assim, possibilitar o acesso dos impetrantes ao interior dos contêineres e a manipulação dos documentos ali constantes é violar a Lei Geral de Proteção de Dados [LGPD]”, argumentou a juíza Ivani Silva da Luz, da 6ª Vara Federal de Brasília.

Orisco de não digitalizar multas e processos não se limita à deterioração natural dos papéis – há também um histórico de desaparecimento criminoso de documentos. Na mesma época em que a multa contra Delci Potrich sumiu da papelada do Ibama, cerca de quatrocentas outras também desapareceram. Em todos esses casos, os autos acabaram prescrevendo. Só aí, o prejuízo estimado pelo Ibama foi de 19,7 milhões de reais.

Em 2012, a Polícia Federal instaurou um inquérito para apurar tanto sumiço. O chefe do setor de arrecadação do Ibama disse à polícia, na época, que não havia sequer como saber o dia em que aconteceu o desaparecimento. Isso porque o Ibama demorou algum tempo para notar que os papéis dos quatrocentos processos não estavam mais lá. A área de onde se supõe que os documentos foram extraviados não tinha circuito interno de câmeras. O inquérito foi arquivado sem encontrar culpados.

Além do sumiço de documentos, já houve destruição de provas de atos de corrupção praticados por servidores. Em novembro de 2004, quando a PF, o Ministério Público Federal e o Ibama investigavam um amplo esquema de pagamento de propina a fiscais do Ibama – que, em troca, faziam vista grossa para a extração ilegal de madeira na Amazônia –, um incêndio destruiu completamente o escritório da autarquia em Guarantã do Norte, interior de Mato Grosso, onde estavam guardadas provas do esquema. Sete meses mais tarde, 127 pessoas foram presas na Operação Curupira, incluindo o gerente-executivo do Ibama no estado, Hugo José Scheuer Werle, e o então diretor de Florestas do órgão em Brasília, Antônio Carlos Hummel.

Outro escândalo aconteceu pouco depois, em 2006. O fiscal do Ibama Luiz Carlos Prestes Leite autuou a Empresa de Mineração Aripuanã em 1 milhão de reais, em valores da época, por extração irregular de calcário em uma das fazendas da empresa, também no interior do Mato Grosso. Além da multa, a área foi embargada. No ano seguinte, a empresa conseguiu reverter o embargo, mas, antes que fosse formalmente notificada dessa decisão, o processo físico desapareceu dos escaninhos do Ibama. O caso ficou paralisado por anos. Em setembro de 2010, Leite se encontrou com um engenheiro da mineradora no estacionamento do Ibama em Cuiabá. Àquela altura, após correções, a multa já chegava a 2 milhões de reais. O fiscal mostrou a ele a notificação do Ibama, documento de que a empresa precisava para voltar a operar na fazenda, e se dispôs a entregar o papel, assim como todo o processo de autuação, em troca de propina.

“E aí, como é que faz pra acertar?”, disse Leite. O engenheiro desconversou. O fiscal, dali em diante, passou a pressionar não apenas ele, mas também uma das sócias da mineradora, Júlia Tretel Penço. Ela resolveu procurar a PF e relatar o que vinha ocorrendo. Foi orientada pelos policiais a dar corda para o servidor, conversando com ele pessoalmente e por telefone. Os dois combinaram de se reunir na sede da empresa na manhã de 19 de janeiro de 2011. O fiscal não sabia, mas Penço escondia um microfone na roupa, instalado pelos policiais federais. Leite deixou claro que, ao propor o esquema criminoso, falava em nome de um grupo de fiscais. Deu-se o seguinte diálogo:

– Quando você fala que esse pessoal pode dar jeito [na multa e no embargo], como assim você fala? — perguntou a empresária.

– Eles entregam pra você o processo, aí queima, você dá fim nela [multa] — respondeu o fiscal.

– E o que que é que eles pediram?

– Eles pediram oitenta [mil reais].

– E aí, eu vou ter certeza que não vou ter problema depois?

– Não, esse processo acabou – arrematou o fiscal.

A empresária combinou uma nova reunião para dali a cinco dias, novamente na empresa. No encontro, ela entregou a primeira parcela da propina ao fiscal. Em troca, Leite deu a ela não os documentos da autuação original, de 2006, mas um processo derivado dela. Ao sair do prédio, o fiscal foi preso em flagrante pela PF. Na casa dele, foram apreendidos vários processos do Ibama. Ele foi condenado a um ano de prisão por extravio de documento público, punição que acabaria prescrevendo. Em agosto de 2011, Leite foi demitido do Ibama.

O prejuízo com a falta de digitalização de multas só será conhecido daqui a alguns anos, quando – e se – esses documentos forem tratados. “Infelizmente o histórico da administração pública brasileira é de leniência na guarda, gestão e preservação de documentos. Se nada for feito a curto prazo, esses papéis tendem a desaparecer, com grave prejuízo à memória institucional do Ibama”, diz Rogério Henrique de Araújo Júnior, professor de Arquivologia da Universidade de Brasília (UnB).

Não são incomuns casos desastrosos de multas que se perdem depois da fiscalização in loco. A piauí identificou, por exemplo, uma multa de 380 mil reais em nome de Donizete dos Reis Lima que desapareceu e só foi encontrada 16 anos depois pelo Ibama. Já tinha prescrito, é claro. Lima foi autuado por desmatar 3 mil hectares de mata nativa, mas sequer foi avisado da multa. O servidor que relatou o processo lamentou a “completa fragilidade” da autuação, já que não constava nela nem o CPF do autuado, nem a identificação do servidor que aplicou a multa.

Outro caso que exemplifica o descontrole dos processos físicos aconteceu em 2010. Marcio Alencar Ferreira, dono de uma fazenda em Cocalinho (MT), foi multado em 1,2 milhão de reais por queimar 1,2 mil hectares de terra sem autorização do Ibama. Durante o processo, Ferreira alegou que o fogo tinha sido causado por grileiros que queriam incriminá-lo. O fazendeiro foi assassinado com um tiro no peito em 2012, e seu corpo foi encontrado carbonizado na zona rural de Cocalinho. Mas o Ibama continuou tocando o caso até a prescrição. Passou cinco anos cobrando uma multa milionária de um morto.

Suely Araújo, que presidiu o Ibama entre 2016 e 2019, atribui a situação precária dos documentos à falta de recursos. “As verbas que ficam para as superintendências são muito pequenas. Normalmente, quando o governo aumenta recursos do Ibama, eles são destinados à fiscalização e ao combate a incêndios. A parte administrativa fica abandonada”, diz. Ela lembra que, durante a sua gestão, a superintendência de Mato Grosso sofreu até mesmo para isolar os documentos da chuva. “Eles colocavam uma lona em cima para proteger. Tivemos de fazer um telhado novo”, conta Araújo. “Não dá pra fazer mágica.”

O Ibama tem conhecimento do potencial prejuízo com a perda e destruição de papéis. Há anos, servidores do órgão vêm chamando atenção para a necessidade de contratar uma empresa especializada em acervo e digitalização de documentos. “O Ibama possui documentação diversificada que deve ser tratada de forma diferenciada”, diz uma nota interna do órgão, publicada em outubro de 2018. “A falta de tratamento adequado desses documentos tem gerado dificuldades na recuperação de informações, destruição ou até mesmo inutilização.”

Segundo uma análise interna do Ibama, não há profissionais capacitados dentro do órgão para realizar essa tarefa. A contratação de uma empresa, enquanto isso, segue empacada – segundo o instituto, por falta de recursos. O custo estimado para fazer essa contratação e digitalizar os documentos apenas no Mato Grosso é de cerca de 2 milhões de reais.

Procurada pela piauí, a assessoria do Ibama informou que está prevista uma força-tarefa para o período de julho a setembro de 2023 que deverá cuidar da higienização e digitalização da papelada na superintendência do Mato Grosso. Segundo a assessoria, a frequência com que multas prescrevem no estado não tem relação com a falta de digitalização dos papéis, mas com o quadro reduzido de servidores. O Ibama também informou que, ao menos no Pará, já está em curso a contratação de uma empresa terceirizada para digitalizar documentos. Não há prazo para a conclusão desse serviço.

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