GERAL
Caso do espião russo colocará Lula na encruzilhada entre Biden e Putin
A decisão dos Estados Unidos de pedir ao Brasil a extradição do espião russo Sergey Cherkasov (foto) vai abrir uma complicada encruzilhada com a qual o governo Lula terá de lidar nos próximos meses.
O pedido foi feito pelas autoridades americanas ao governo brasileiro nesta semana e será submetido ao ministro Edson Fachin, encarregado do caso no Supremo Tribunal Federal. Depois, caberá ao presidente da República a decisão final.
Fachin já tem em mãos outro pedido de extradição, feito pelo governo Rússia sob o argumento de que Cherkasov é um criminoso comum condenado no país de Vladimir Putin.
Ocorre que as autoridades brasileiras — incluindo Fachin, que já foi exaustivamente informado sobre o caso pelos órgãos de inteligência — sabem que o argumento russo é redondamente falso.
A história de que se trata de um criminoso comum já condenado pela justiça na Rússia é uma conhecida estratégia de Moscou, já usada em outros casos, para tentar levar de volta para casa espiões pilhados em ação no exterior.
No papel, porém, até pela boa relação que Brasília mantém com o Kremlin, o Palácio do Planalto e o STF acabam tendo que considerar o argumento russo como verdadeiro, até prova em contrário.
É quase um jogo de cena, mas é preciso fingir naturalidade em nome da diplomacia.
Pacto de silêncio
Tanto a Polícia Federal quanto a Abin têm a história de Cherkasov esquadrinhada, embora tratem o assunto sob o mais absoluto sigilo sob pena de gerar atritos diplomáticos.
Ainda no governo de Jair Bolsonaro, como mostrou a coluna em julho, houve uma ordem unida do Planalto para que se fizesse um pacto de silêncio em torno do tema. O motivo: o então presidente não queria problemas com Putin.
As apurações da PF e da Abin mostram que Cherkasov é, de fato, um espião a serviço de Moscou, integrante de uma ampla rede de agentes que se infiltram em outros países e assumem identidades estrangeiras para, mais adiante, executarem planos de interesse do governo russo.
Flagrado em ação
No caso concreto, Cherkasov viveu no Brasil — passou por Brasília e Rio, por exemplo — sob identidade brasileira falsa (era Viktor Muller Ferreira, supostamente nascido em niterói) e foi flagrado pela Holanda ao tentar entrar no país.
O plano era se infiltrar como estagiário no Tribunal de Haia, onde correm investigações contra Putin pela guerra da Ucrânia.
A imigração holandesa o mandou de volta para o Brasil, e a Polícia Federal o prendeu tão logo ele desembarcou de volta em Guarulhos.
Investigado inicialmente por uso de documentos falsos, Cherkasov foi condenado pela Justiça Federal e segue preso — no momento, está no presídio federal de Brasília.
O Brasil como “berçário” de espiões
As investigações realizadas pelas autoridades brasileiras já descobriram que ele não estava sozinho por aqui.
Pelo menos mais um espião já foi identificado e há fortes indícios de que o Brasil estava funcionando como uma espécie de “berçário” para desenvolvimento em série de agentes russos com identidades brasileiras falsas.
O ministro Fachin sabe de tudo isso.
Até por essa razão, ao entender que o pedido de extradição feito pela Rússia preenche os requisitos legais, ele fez uma ressalva importante: condicionou o envio de Cherkasov para Moscou ao encerramento das investigações oficiais que estão em curso na Polícia Federal.
Não é algo trivial. Nos bastidores, o governo americano opera com força para que o Brasil não devolva o espião para a Rússia.
CIA e FBI em Brasília
Como há muito não se via, agentes do FBI e da CIA têm interagido intensamente com investigadores e outras autoridades brasileiras. O trânsito de oficiais americanos tem sido grande em gabinetes importantes de Brasília, especialmente nas últimas semanas.
A coluna apurou que, com base no MLAT, o acordo de cooperação que Brasil e Estados Unidos têm para troca de informações na área criminal, o FBI pediu o compartilhamento das investigações da PF sobre o caso. Caberá a Edson Fachin autorizar ou não o envio das informações.
Os Estados Unidos entraram na jogada e também pediram a extradição do espião porque há um processo contra Cherkasov em território americano pelo fato de ele, já usando identidade brasileira, ter passado uma temporada no país — por lá, ele fez uma pós-graduação na prestigiosa universidade Johns Hopkins, em Washington.
Uma encruzilhada para Lula
O pedido de extradição feito por Washington exigirá uma complicada operação diplomática que, no fim das contas, se transformará numa saia justa para o Brasil.
Primeiro, caberá ao próprio Fachin decidir o que fazer diante de dois pedidos de igual teor, um russo e outro americano.
Mas a complicação maior virá depois, já que a palavra final sobre extradições em geral cabe ao presidente da República.
Lula, que semanas atrás se indispôs com Washington ao visitar a China de Xi Jinping e disparar críticas — algumas veladas, outras nem tanto — aos Estados Unidos, terá que decidir se atenderá Joe Biden ou Putin. E num momento em que os ânimos entre os Estados Unidos e Rússia estão mais do que acirrados.
O presidente poderá, claro, usar o imbróglio em favor dos interesses brasileiros. Mas qualquer decisão que tomar no caso virá, necessariamente, acompanhada de efeitos colaterais — de um lado ou de outro.