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Mulher negra e surda perdeu 4 dentes morando com desembargador
Quando foi resgatada da casa do desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) Jorge Luiz Borba em meio a uma operação da Polícia Federal para investigar trabalho escravo, Sonia Maria de Jesus, de 50 anos, tinha três dentes a menos e pelo menos outro que estava mole e precisava ser extraído.
A mulher passou mais de três décadas na residência dos Borba. Até pelo menos 2019, sem outro documento além de sua certidão de nascimento, e, até 2021, sem plano de saúde. É o que constataram auditores do Ministério do Trabalho, em um auto de infração lavrado contra o magistrado nesta semana.
O documento foi usado pela Defensoria Pública, para tentar convencer, sem êxito, ministros do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça de que a família não poderia mais ter contato com ela.
Auditores do trabalho colheram pelo menos seis depoimentos de ex-empregados e empregados atuais da família Borba que conviveram com Sonia. Ela vivia em um quarto apartado e almoçava com outros empregados. Surda, nunca foi levada a uma escola para se alfabetizar em Linguagem de Sinais. Vivia com roupas de segunda mão da família, e que passava o dia fazendo tarefas domésticas.
Em retratos guardados pela família, Sonia aparece ao lado de outros empregados com a legenda: “Ajudantes de ferro”. Funcionários relataram que Sonia usava os mesmos trajes de outros empregados, sofria com puxões de cabelo e beliscões de Ana Borba quando “não fazia uma tarefa certa”.
Uma destas ex-funcionárias afirmou que Soninha, como era conhecida, uma vez apareceu irritada apontando para os dentes. Subiu para levar café à esposa do desembargador e relatou que ela estava chorando de dor. Relatou ter ouvido que Soninha “não tinha nada”. Ela disse ter dado remédio a ela e que a patroa sequer saiu do quarto ou perguntou sobre a dor.
Em um segundo episódio, ela disse que Soninha apareceu chorando e apontando para o estômago e que a deixou deitada para descansar. Segundo ela, mesmo assim, “Dona Ana foi chamar Soninha, cutucou ela e pediu para que subisse para arrumar o quarto dela. Segundo esta ex-funcionária, Soninha “arrumava muito bem a cama da Dona Ana”, mas nunca a viu “dormindo dentro da casa grande”.
Após o resgate de Sonia, os Borba tiveram de entregar itens dela. Segundo a auditoria, eles eram “parcos e insuficientes para sua manutenção com mínima dignidade”. O Ministério Público do Trabalho teve de pedir até mesmo calcinhas e sutiãs para o Projeto Ação Integrada, vinculado à Cáritas, entidade de atendimento a refugiados e solicitantes de refúgio.
O estado de saúde foi avaliado por diversos médicos. Na boca de Soninha, sobravam tártaros e faltavam três dentes. Os auditores registraram que um deles tinha “grau severo de mobilidade indicando imediata extração”.
Mesmo funcionários atuais dos Borba afirmaram que Soninha não tinha convívio social com a família e acabava ajudando nas tarefas da casa, embora eles tenham dado depoimentos com relatos bem menos graves do que os ex-funcionários.
Como nunca havia sido levada à escola, ela nunca aprendeu a se comunicar por meio de Linguagem de Sinais. Os próprios Borba admitiram que nunca haviam feito plano de saúde para ela até 2021.
Como mostrou o Metrópoles, Soninha foi entregue pela própria mãe temporariamente à sogra do desembargador, que era psicóloga de uma creche em Osasco, onde vivia a família, em razão do temor do pai, que agredia a esposa e filhos. Quando este período passou, ela viu a filha apenas mais uma vez, e depois passou a vida procurando por ela, sem qualquer notícia de seu paradeiro.
Irmãos afirmam que ela morreu em 2016 sem saber da Sonia. Ela acabou sendo repassada de mãe para a filha, que se casou com o magistrado. E ficou na casa dos Borba por mais de 30 anos.
No auto de infração, ficou registrado que há prova farta de que ela nunca recebeu tratamento semelhante ao dos filhos do casal, mas, sim, aquele dispensado aos empregados. O Ministério Público do Trabalho tentou firmar um Termo de Ajustamento de Conduta com a família, que envolvia a remuneração pelo período trabalhado, mas as tratativas não avançaram.
Ela estava acolhida em uma casa especializada até que os ministros Mauro Campbell, do Superior Tribunal de Justiça, e André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal, negaram pedido da Defensoria Pública para que ela continuasse afastada dos Borba e recebendo atendimento e educação na casa de acolhida. Ela acabou voltando para Santa Catarina.