BRASIL
Essequibo brasileiro? Brasil já perdeu território gigante para Guiana
A nova investida da Venezuela sobre o Essequibo, uma área dentro da Guiana repleta de minerais e outros recursos naturais, trouxe à tona que a América do Sul também enfrentou grandes disputas territoriais. O Brasil, conhecido mundialmente por uma postura pacífica nas relações internacionais, já passou por uma disputa fronteiriça na mesma região.
No litígio, que ficou conhecido como “Questão do Pirara”, o país entrou em um conflito diplomático com o Reino Unido por uma área de cerca de 33 mil quilômetros quadrados, localizada entre a fronteira do atual estado de Roraima e a Guiana.
Com áreas ricas para a agropecuária e em alguns minerais, o local daria acesso ao Brasil ao mar do Caribe pelos afluentes do rio Amazonas. Do outro lado, também poderia deixar com que os britânicos alcançassem toda região norte do Brasil, devido à possibilidade de navegação desde o local.
Em meio a embates diplomáticos entre os dois países que se arrastavam por anos, em 1898, o governo brasileiro aceitou a proposta inglesa de submeter a disputa ao julgamento do governo italiano – considerado imparcial à época, tendo como árbitro o rei Vitor Emanuel 3°, último governante monarquista da Itália.
O rei acabou por dividir o território, beneficiando a Guiana com 3/5 do local, o que representa uma área equivalente a treze cidades de São Paulo – decisão que causou protestos da diplomacia brasileira liderada por Joaquim Nabuco.
“A região tanto do lado brasileiro e britânico tinha um potencial agropecuário muito grande, com grandes fazendas de gado. Mas o Brasil buscava uma rota fluvial pelo interior, saindo do rio Amazonas e chegando no Atlântico norte, que é o mar do Caribe. É esse acesso que o país perde na disputa”, afirma Reginaldo Gomes, historiador e professor titular da Universidade Federal de Roraima.
Disputa entre Portugal, Holanda e Reino Unido
Apesar da resolução do caso ocorrer apenas no final do século 19, a região é alvo de disputa entre potências europeias desde o século 17. À época, os holandeses ocupavam a área da atual Guiana. Mas, após as invasões de Napoleão pela Europa no século 18, a área foi destinada aos ingleses, que ajudaram o país a se livrar da invasão do imperador francês.
Segundo Carlo Romani, doutor em História pela Unicamp e professor da Unirio, e que estuda a história pela perspectiva das populações que ocupam os territórios, o local é ocupado pela população indígena e foi rota da captura dos povos originários para trabalho forçado desde a colonização portuguesa.
“Essas populações caribes, principalmente os Macuxi, eram, ao contrário dos Wapichana, que já tinham mais contato com os luso- brasileiros, mais arredios ao cerceamento e à civilização forçada e, por isso, mais voltados aos britânicos, pois carregávamos essa pecha de escravistas”, afirma.
“Na época, havia tropas luso-brasileiras que avançavam em direção ao território de Pirara e voltavam para o Forte São Joaquim para distribuir para trabalhos forçados pelo Amazonas”, completa.
No contexto da abolição da escravidão da época, os britânicos reclamam o mesmo direito à liberdade em relação às populações indígenas. A partir daí houve uma defesa da posse do Pirara pelos britânicos na opinião pública europeia pois, em tese, o Brasil escravizava os indígenas do local.
“Isso aparece nos jornais britânicos, a partir de 1840, trazidos principalmente por conta do Robert Schomburgk, grande explorador das Guianas, que é quem conseguiu fazer percursos e criar uma demarcação do local. Ele é quem leva essa história a Londres e isso é noticiado na Europa. Então, sim, houve uma certa mobilização na época e que volta à tona no começo do século 20 quando a arbitragem vai ser discutida, colocando os brasileiros como escravistas e que supostamente legítima a reivindicação dos britânicos”, afirma Romani.
Nesse contexto, em 1841, há uma expedição militar inglesa chefiada por Schomburgk que promete ocupar a região de Pirara, proteger os índios e demarcar novos limites na fronteira da Guiana, mesmo sem a anuência do governo brasileiro.
“Quando os britânicos chegaram para neutralizar a área, o ainda Império brasileiro recua e parte para o embate diplomático”, diz Romani.
Rei controverso e diplomacia
Para tentar resolver o conflito, em 1899, o Barão de Rio Branco, então ministro das Relações Exteriores, convocou Joaquim Nabuco, uma das figuras mais importantes do movimento abolicionista no Brasil, para liderar a diplomacia brasileira na questão.
À época, não existiam organizações multilaterais, como a ONU (Organização das Nações Unidas), para a resolução de conflitos. Por isso, o Brasil, que também passava pela transformação do segundo reinado para a República, apoiou a demanda inglesa de uma arbitragem, um julgamento feito por um terceiro imparcial e escolhido pelas partes.
“Esse processo de arbitragem foi muito comum para uma série de questões à época, inclusive do Brasil. A questão do arrendamento da terra para um conglomerado britânico que explorava látex e o ciclo da borracha no Acre foi feita assim, a disputa pelo Amapá com a França também”, conta Vanessa Braga Matijascic, professora de Relações Internacionais na FAAP.
Da parte brasileira, liderada por Nabuco, a diplomacia afirmara ao árbitro que a posse da terra era legal pois o país já controlava o rio Amazonas e seus afluentes superiores, que haveria uma ocupação do local desde a época de Portugal, além de uma ausência inglesa, e que pelo país ser o sucessor da metrópole, era considerado o protetor natural da área.
Os ingleses, por sua vez, afirmavam que o território contestado foi inteiramente adquirido pelos holandeses por via da ocupação e, depois, transmitido à Inglaterra, que conservou e desenvolveu tal presença. Além disso, a posse do local era confirmada pelo consentimento dos índios, que se reconheceriam como ingleses.
Segundo o livro A Questão do Pirara, de José Theodoro Mascarenhas Menck, ex-consultor legislativo do Congresso, e que conta com prefácio do ex-presidente Michel Temer, Nabuco se mostrava preocupado com a atuação do rei Vitor Emanuel 3°, que iria decidir o pleito. “O receio que tenho não é falta de imparcialidade, é de exame superficial, amateurich, da questão, e de entrarem jurisconsultos políticos, de regras de direito ad hoc”, confidenciou ao barão de Rio Branco.
O líder italiano, que buscava fortalecer a Itália como potência junto aos países europeus, após a unificação do país, viu no convite uma grande cortesia da Inglaterra para com ele, de acordo com a publicação.
Assim, o árbitro declarou que por um lado “não se podia admitir como certo que Portugal, inicialmente, e o Brasil em seguida, tivessem realizado uma efetiva tomada de posse de todo o território contestado” mas que também “a conquista da soberania por parte da Holanda primeiramente e, mais tarde por parte da Grã-Bretanha, não foi efetuada senão em parte do território que era objeto de litígio”.
Por isso, Vitor Emanuel 3º optou por traçar uma linha intermediária aos dois pedidos, conhecida como Mau-Tacutu, que o Brasil já havia negado anteriormente, e que delimitava um total de 65% para a Inglaterra e 35% do território em disputa para o Brasil. Na parte concedida ao Brasil está atualmente localizada a reserva indígena Raposa Serra do Sol.
A decisão foi recebida de maneira negativa pela diplomacia brasileira, que aceitou, contudo, a perda de parte do território. “A Inglaterra ganhou mais do que nas negociações anteriores pois ampliou a extensão territorial. Essa sentença foi recebida sem protesto formal, o que vai em direção a tradição brasileira da diplomacia em respeitar as decisões finais, ainda que elas tenham desfavorecido o Brasil”, afirma Vanessa Braga Matijascic.
“Joaquim Nabuco fez um minucioso estudo sobre a região com base desde o Tratado de Tordesilhas, mostrando como a região tinha essa base militar no Rio Branco e uma próxima do rio Pirara e que muitos indígenas da região trabalhavam para o exército brasileiro. Mas, de qualquer forma, o rei Emanuel tomou uma decisão sábia, reconhecendo para o lado britânico os processos históricos. Na minha visão, não perdemos, nós ganhamos, dado que os britânicos queriam a região de Roraima inteira”, diz Reginaldo Gomes.
Posteriormente, já na década de 1940, o ex-embaixador dos EUA no Brasil, Lloyde Gricson, publicou um livro que trazia um suposto diálogo que teve com o rei Vitório Emanuel 3º.
Na publicação, ele diz que o italiano afirmara que “não gostava dos tópicos e do povo de lá” além de que a diplomacia brasileira havia “enviado mapas falsos na arbitragem” e que, por isso, “ele poderia ter dado todo o território para a Inglaterra, mas que acabou por dividir”.
À época, o Brasil indagou o governo italiano sobre as supostas falas do rei, que foram negadas pelos representantes do país.
Implicações e território atual
Apesar das semelhanças das disputas, especialistas ouvidos pela BBC News Brasil não veem paralelos com o conflito brasileiro e a atual investida da Venezuela sobre uma região da Guiana.
Para Carlo Romani, a área do Pirara é uma região de passagem e de difícil habitação, como o Essequibo, mas não há indicativos da presença de petróleo no local perdido pelo Brasil.
“Pirara na época de chuva fica inundada e serve como intersecção de bacias hidrográficas diferentes, como Amazonas, e do lado do Essequibo. Então o interesse particularmente para os britânicos, era que o Pirara seria uma área de passagem para afluentes que permitiam chegar ao rio Amazonas e, com isso, ao norte do Brasil”, disse.
“Já o interesse estratégico luso brasileiro era de impedir a passagem, ou pelo menos dificultá-la ao máximo”, completa.
Apesar da ausência possível de petróleo, há registros de minerais preciosos na região.
“No século 19 houve uma descoberta do ouro e dos diamantes e a região, tanto do lado brasileiro ou britânico, tinha um potencial agropecuário muito grande, com grandes fazendas de gado. À época houve reclamações tanto de Brasil e Venezuela, mas a partir de 1930, foram colocados marcos físicos na divisa dessas fronteiras. O tema reacende na Venezuela com Hugo Chávez, que quando assume, traz espírito patriótico para o país e tenta retomar a discussão de descontentamento do que foi discutido no século 19”, finaliza Gomes.