A educação é um direito de todo e qualquer cidadão, previsto na Constituição. No entanto, quando o assunto é educação dentro do sistema prisional, essa conversa muda. Atrás das grades, o cidadão que cometeu algum crime costuma ser visto pela sociedade como alguém sem dignidade. Portanto, aquilo que é um direito passa a ser considerado um benefício. E quem faz com que o ensino chegue à população carcerária é julgado com maus olhos. Os desafios para quem leciona dentro da instituição começam a partir disso.
“A primeira é a dificuldade simbólica. O professor é um inimigo. Quando o professor entra no espaço prisional, ele é uma pessoa não grata. É aquela pessoa que veio para dizer ao preso que ele é gente e que ele pode ter um trabalho, que ele pode ter uma família, que ele pode sustentar, se sustentar, conseguir fazer uma faculdade, que ele consegue ir ao Enem, fazer uma Encceja”, afirma Francisco Augusto da Cruz de Araújo, sociólogo e mestre em Ciências Sociais.
Guto, como é chamado, coordena pesquisas sobre a atuação policial, violência social, organizações criminosas, sistema de justiça e criminalidade. Trabalha na educação superior de pessoas privadas de liberdade desde 2017 no Rio Grande do Norte, ministrando aulas e coordenando professores.
Na época da fuga de presos da Penitenciária Federal de Mossoró, no início do ano, seus tweets viralizaram por contar como é rigorosa a segurança do local. “15 dias antes de ir ao presídio, enviamos nossos documentos. São enviados para a inteligência em Brasília e colocam nossa vida de cabeça pra baixo. Fazem uma investigação profunda. Só entra quem tem nível alto de confiança”, apontou em uma série de publicações na ocasião.
Ele é professor da Universidade Aberta do Brasil, no Instituto Federal do Rio Grande do Norte, e, em 2017, passou a lecionar para presos que ingressaram no ensino superior pelo Sistema de Seleção Unificada (Sisu) do governo federal. Ao todo, nove alunos tinham sido aprovados para estudar presencialmente no curso de Gestão Ambiental, mas, como estavam na Penitenciária de Mossoró, não podiam ter aulas todos os dias.
Logo, foi criado um sistema para que o estudo fosse viável e feito a distância. Guto fazia o acompanhamento desses alunos e ajudou na construção de estratégias para que a educação chegasse a essa população carcerária dentro das restrições atribuídas à instituição prisional. Foram obtidos recursos para a impressão do material, que precisou ser adaptado, já que nem tudo pode entrar na prisão. Canetas e lápis passam por uma rigorosa inspeção, para que nada de ruim ocorra durante as aulas.
Na prática, a teoria é outra
Quando foi convidado, Guto tinha “a faca e o queijo na mão”, conforme menciona ao Terra, já que essa era a sua área de pesquisa. No entanto, ele afirma que foi “ingênuo”.
“Eu não entendia muito de como era a dinâmica da prisão porque, enquanto você estuda, é uma coisa, depois que você está lá dentro, vendo a rotina, convivendo com os servidores do sistema prisional, com as pessoas privadas de liberdade, com familiares também, aí você vai aprendendo”, explica Guto.
Durante esse período, alguns desses alunos foram transferidos para outros presídios federais e ficaram espalhados pelo Brasil. Guto conta que alguns tentaram dar continuidade nos presídios para onde foram, foi dado suporte para que continuassem a graduação, no entanto, segundo ele, as próprias equipes das unidades prisionais federais não tinham interesse em fazer isso acontecer porque sabiam que aquele preso não ficaria ali dois ou três anos para concluir um curso. “Seria um trabalho em vão na cabeça deles.”
Apenas dois conseguiram se formar dessa turma. Em 2020, um novo grupo com dez alunos passou a estudar, e cinco estão concluindo o curso. O professor explica que muitos não conseguem concluir por questões externas à própria vontade.
“Imagina um sujeito passar dez anos preso, dentro da prisão, começa a fazer sua faculdade e sai. Ele tem que recomeçar a trabalhar, tem que criar o filho que ele deixou para trás, a esposa.”
Dois alunos nós perdemos, porque um cometeu suicídio, e o outro foi assassinado. Então, são as consequências do aprisionamento, do processo do crime, da violência e do aprisionamento — Francisco Augusto da Cruz de Araújo”
Preparação psicológica
Guto faz também o treinamento dos professores que vão lecionar dentro do sistema prisional. Segundo ele, os educadores precisam passar por uma preparação psicológica e recebem apoio para desconstruir o estigma em relação aos presos. Os alunos também recebem um preparo para saber lidar com os professores, pois não podem tratar quem ensina ali como um policial penal.
“Eles [detentos] estão acostumados a receber ordens e obedecer, e um aluno tem que ter autonomia de questionar o professor, de interagir e tal. Eu sou essa pessoa que faz esse acompanhamento, a preparação das disciplinas”, diz.
No início do semestre, todo o material é adaptado conforme o padrão de segurança instituído dentro do presídio. O material de estudo é todo impresso, as folhas numeradas e as páginas coladas. Nada pode ser encadernado ou grampeado, pois não pode entrar alumínio na instituição.
O trabalho psicológico vai além da equipe que leciona. É importante que o preso também receba esse respaldo por parte dos professores. Muitos ali trabalham oito horas por dia e precisam dar conta de oito disciplinas por semestre, uma rotina comum na vida de brasileiros que fazem graduação. Mas ali, eles estão no “inferno”, lidam com a falta da família e não vivem o mundo externo, por conta dos crimes que cometeram.
De acordo com a Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), até dezembro de 2023, a população carcerária de todo o Brasil era de 644.316. Desse total, 127.878 estão em processo de alfabetização ou cursam o ensino fundamental/médio/superior, ou seja, cerca de 20%. Entre os presos que estudam, 29.546 trabalham e estudam simultaneamente.
“Imagina só: você está no inferno, pagando oito disciplinas, tendo que dar conta de prova, entregar relatório, fazer fechamento, apresentar seminário. Fora que tem a questão que o levou até lá também, que tem toda uma vida por trás. Quando eu falo do inferno, englobo isso tudo. O inferno é a culpa que ele carrega, a culpa que a sociedade impõe sobre ele e o tratamento indigno.”
A professora Maria Silverlania Moraes Melo, que atua há dois anos no ensino de jovens e adultos na Unidade Prisional Professor José Sobreira de Amorim, em Itaitinga (CE), conta que uma das dificuldades é fazer com que o aluno se mantenha motivado dentro da sala de aula.
“A gente recebe alunos desmotivados, que realmente não têm mais nenhuma identidade, que se sentem realmente pertencentes àquele local. Não tem perspectiva de vida porque sabe que a sociedade já o discrimina. Muitas das vezes são alunos em que a própria família já o abandonou”, relata.
Diante dessa dificuldade, o professor precisa pensar em uma dinâmica diferente, para prender a atenção do estudante que está ali e, assim, mudar a perspectiva que aquele preso tem da própria vida.
‘Um leão por dia’
Se em uma sala de aula ‘tradicional’, professores costumam ‘matar um leão por dia’, por conta dos desafios que é ensinar, dentro das penitenciárias, são dois, três ou mais leões, pois as dificuldades são ainda maiores. Uma delas tem a ver com a relação de confiança que se estabelece entre aluno e professor.
Ao final do dia, conversando com um aluno, esse mestre pode descobrir coisas que ele talvez não esteja preparado para saber. É comum os presos confidenciarem várias coisas, mesmo que o profissional não queira saber, como detalhes dos crimes que cometeram aqui fora. Os estudantes também comentam planos que desejam colocar em prática quando terminarem a faculdade, como fazer uma pós-graduação, e o que farão quando sair da prisão.
“É inevitável, na relação de professor-aluno, há uma troca de confiança, você confia, você cria uma relação afetiva. Eu, particularmente, não procuro saber o que aconteceu porque eu não sou juiz, eu sou professor, então, não procuro saber o que eles cometeram, quanto tempo de pena eles estão tirando. Só que, na verdade, nesse dia a dia, termina acontecendo. Eles dizem espontaneamente”, explica Guto.
‘Criado para torturar’
Guto pondera que, embora a educação tenha sido instituída dentro dos presídios, o sistema prisional não é voltado para a educação. Na opinião dele, o sistema não é pensado para garantir o que a Lei de Execuções Penais determina, mas, sim, para o “aprisionamento, tortura e confinamento dessas pessoas”. Guto conta que são os professores que tentam implementar a política educacional.
“A gente passou por todos os problemas que você possa imaginar, de tentarem punir os nossos alunos, marcação, transferência sem comunicar, punição através da educação, porque, como a educação não é um benefício? Ela não é um benefício. Dentro do sistema, ela é um benefício. Aqui fora, o legislador colocou a saúde, a educação e a alimentação, assistência religiosa e contato com a família como direito do preso. Isso tudo faz parte do processo de interação social. O sujeito só vai sair bem se ele tiver isso tudo”, defende.
Segundo o artigo 22 da Lei de Execução Penal nº 7. 210/84, “a assistência social tem por finalidade amparar o preso e o internado e prepará-los para o retorno à liberdade”. No entanto, na prática, não é isso que ocorre. O sistema prisional dá direito à educação para determinados grupos e pessoas, que praticam determinados crimes, aponta Guto.
O sociólogo, pedagogo, mestre e doutor em educação Roberto da Silva escreveu um artigo na revista Sociologia Jurídica, publicado em 2006, dizendo que Paulo Freire e Moacir Gadotti, quando convidados a refletir sobre o tema, alertaram que a pretensão de se criar um método exclusivo ou próprio para a educação de presos só acentuaria a sua discriminação.
Esse assunto foi debatido por Guto e seus colegas do Instituto Federal do Rio Grande do Norte. Ele aponta que as prisões são “organismos vivos” e que o sistema prisional é que diz como a educação deve ser feita dentro das prisões e não o contrário.
O professor argumenta que a maneira como o ensinar é feito dentro das unidades prisionais legitima a segregação e a punição dos alunos que estão lá dentro e cometeram algum tipo de falha.
“Porque eu vou legitimar que o policial penal ou o diretor da unidade prisional puna o aluno quando ele cometer uma falha lá dentro, tirando da sala de aula, que impeça ele de fazer provas, quando o professor vai fazer um seminário virtual, eles diz assim, ‘ah, está sem internet’. Eu entendo isso tudo como tortura também, um processo de tortura. Ou quando eles mandam os alunos para a sala de aula com fome”, alega.
Apesar do questionamento de Guto, ele afirma que o sistema precisa se adaptar com todos os rigores de segurança, sem que outras pessoas e educadores burlem isso. “A gente sabe de toda preocupação que deve existir, mas não são eles que devem ditar. Estamos agora repensando e mudando, não existe uma educação prisional, existe uma educação em prisões.”
Nós, que somos educadores, estamos dizendo que a educação é um direito humano, e não um benefício”, diz Guto
Inimigo do sistema, estigma e precarização
Dentro das prisões, o professor é uma espécie de “curto-circuito” e, por isso, não é bem visto. Educadores costumam incentivar o questionamento entre seus alunos e, dentro da cadeia, não é diferente. Guto aponta que, muitas vezes, foi tratado como se fosse um preso ou parente de um detento, como se estivesse ali querendo libertá-los.
Ele conta que já foi questionado e tem as redes sociais monitoradas porque divulga seus trabalhos e, de certa forma, milita para que o sistema melhore.
Outra dificuldade mencionada por Guto é a carga de radioatividade a que os professores são submetidos durante as revistas com body scans, que são feitas várias vezes ao dia: na entrada, saída para o almoço, retorno e saída para casa.
“Imagina a carga de radioatividade que esse professor não tem ao longo da vida, se ele trabalhar 5, 8, 9 anos dentro de um espaço prisional. E essa obrigatoriedade de body scan é, na verdade, uma forma de intimidação”, alega. Ele aponta que, por exemplo, policiais penais, médicos, enfermeiros e terapeutas ocupacionais não passam por isso.
Guto conta que até garrafinha de água mineral os professores eram proibidos de levar e tinham que tomar água do bebedouro. Após reivindicação, alguns presídios passaram a permitir a entrada dos recepientes de água.
Esse processo de estigmatização, de extensão da pena que pesa sobre a gente” — Guto
Guto também aponta a precarização das salas de aula em alguns presídios do Estado. Há colegas dele que já lecionaram em um dos corredores dentro dos pavilhões. Ele já viu alunos sentados em potes grandes de margarina e já usou quadro pequeno, aqueles usados para crianças brincarem, como lousa.
“Como é que um professor da educação de jovens e adultos, que está ali alfabetizando, ensinando Matemática, Ciências, ensinando tudo, dá aula num quadro como aquele? É um absurdo a precarização da educação prisional. Cada vez mais, eu entendo que a gente precisa ocupar os espaços de poder, ocupar os espaços de mudança da cultura. Ocupar os espaços de formação de professores, de formação dos policiais penais, para a gente transformar essa realidade.”
Lá dentro, os professores não podem usar massinha, cola e demais materiais utilizados na educação de jovens e adultos (EJA). Por exemplo, o professor não pode fazer exercícios de colagem.
“A gente, como professor, precisa meio que rebolar pra conseguir dar uma aula bacana. Porque eu não tenho giz, lousa. A pesquisa é no livro, por conta da disciplina deles, não podem ter esses meios [acesso à internet]. Então, a gente tem que fazer com pouco, e rende”, afirma a professora de Português e Inglês de jovens e adultos Marisa dos Santos Batista Pavanela, na Penitenciária de Tupi Paulista (SP).
O sociólogo Guto encara isso como barreiras colocadas pelo sistema, que, muitas vezes, não são nem realmente por questões de segurança. “São por questões de implicância, pela forma como o imaginário dos agentes prisionais representa a ideia de prisão”, pontua.
A educação que transforma
No fim de cada semestre, os alunos preparam uma apresentação ou um seminário. É o momento do aluno mostrar o que aprendeu ao longo do ano e o que o ensino mudou em sua vida. As famílias e os professores podem participar.
“Eu sempre digo, ‘gente, todas as pessoas que estão aqui, o porteiro, todos os policiais penais, o pessoal da limpeza, quem está fazendo a obra na prisão, todos, o engenheiro que está fazendo a obra na prisão, todos chegaram onde chegaram porque estudaram. Então, vocês podem chegar muito longe porque não existe prisão perpétua no Brasil, nem existe pena de morte. Vocês estão fazendo escolha, estão vendo que agora vocês podem ter uma outra referência que antes da prisão vocês talvez não tivessem tido'”, exemplifica o sociólogo.
Ele vê o quanto o estudo é poderoso quando os presos colocam a roupa da instituição de ensino. “Parece que a gente está colocando um manto sagrado em cima de uma pessoa que nunca imaginou tirar a farda do presídio para ter que usar uma farda de uma instituição de ensino federal, por exemplo. É poderoso demais”.
Nesse processo, conforme relata, a pessoa que voltou a estudar dentro da prisão retoma laços familiares e tem uma nova perspectiva de vida. Embora a vida aqui fora seja diferente e carregada de preconceitos contra quem já passou pela prisão, o professor e a educação trazem uma ponta de esperança para aquela pessoa que um dia cometeu um grave erro.
“É um grãozinho de areia. Eu choro muito na prisão. Eu choro, você não faz ideia. Quando eu vejo mãe indo para os eventos que a gente faz, formatura, colação de grau, a gente faz aquele evento mesmo porque o sujeito nunca teve isso. Não tem garantia nenhuma de que ele não vai voltar para o mundo do crime, mas eu acho que, para quem vive num estado constante de desgosto e sofrimento, precisa ter um momento daquele de alegria e de orgulho”, finaliza o mestre.