CIDADES
Com vida desacreditada por médicos, bebê com síndrome grave no coração tem vitória na Justiça, mas enfrenta demora de plano de saúde

Uma família de Fortaleza, no Ceará, espera há mais de um mês que o plano de saúde cumpra com a determinação da Justiça de cobrir os custos do tratamento de uma bebê de sete meses, que nasceu com uma síndrome grave. A HapVida deveria custear a transferência de Maria Lígia Azevedo Soares para um hospital de São Paulo, via UTI Aérea, além de remédios e até uma cirurgia no coração, mas até o momento, segue sem atender a medida judicial. A empresa afirma que está em ‘tratativas com a unidade’.
A pequena Lili –como é carinhosamente chamada pelos pais– tem Síndrome do Coração Esquerdo Hipoplásico (SHCE), uma cardiopatia congênita grave em que o lado esquerdo do coração não se desenvolve adequadamente.
Ao Terra, a mãe, Isabel Luiza Azevedo Abreu, contou que a descoberta da doença ocorreu ainda na gestação, quando estava com 19 semanas. Desde a 26ª semana, ela acompanhava semanalmente o coraçãozinho da filha. A pequena nasceu em 18 de março e, com dez dias de vida, foi submetida a um procedimento chamado híbrido.
Ela passou 19 dias internada depois do procedimento e seguia acompanhada pela equipe médica, que em junho achou melhor a criança passar por um cateterismo e a expansão das bandagens já colocadas no procedimento anterior.
“Ela fez esse cateterismo e foi um sucesso. Porém, aproximadamente seis horas depois, ela teve uma isquemia cardíaca e com isso começou o nosso pesadelo. Infelizmente, 5 dias depois, a gente descobriu que pós-infarto, ela teve outros acometimentos, como, por exemplo, um AVC isquêmico”, explica a mãe.
‘Cuidados paliativos’
Lili ficou com algumas sequelas cerebrais, mas, como só tinha dois meses e meio na época, a equipe médica não conseguiu mensurar quais foram os reais danos, conforme explica Isabel.
“Hoje, a gente consegue visualizar que ela é uma bebê que interage, que provavelmente enxerga, porque ela acompanha a gente. Ela escuta. Tem vários indícios de que provavelmente ficaram algumas sequelas, mas a gente ainda não sabe mensurar quais foram elas”, aponta.
A mãe relata que, 30 dias depois, a equipe médica decidiu que não valeria mais a pena continuar com o tratamento da menina, porque provavelmente ela seria uma criança com muitas sequelas. Isso foi comunicado no dia em que sua filha passaria por uma nova cirurgia.
“Com isso a nossa vida virou de ponta cabeça. Porque simplesmente a gente acreditava que iria fazer a cirurgia. Porém, a equipe desistiu. Foi a partir daí que começou a nossa luta para buscar continuação do tratamento da Lili”, afirma.
A família passou a procurar por uma equipe médica que estivesse disposta a tratar a menina. No entanto, como a cobertura do plano é limitada, eles encontraram desafios, enquanto a operadora HapVida negava o tratamento adequado por considerar que não havia mais o que ser feito, além dos cuidados paliativos.
A mãe diz que a filha só estava em cima de uma cama recebendo medicação, esperando “a hora que Deus resolvesse levar”. Na busca incessante por tratamento, eles encontraram uma equipe com expertise para tratar a cardiopatia de Lili em São Paulo.
Determinação da Justiça
Com a aceitação de seguir com o tratamento, a família resolveu levar o caso para a Justiça. Em 5 de setembro, a Justiça deferiu o pedido de liminar e determinou que o plano de saúde custeasse a transferência da bebê, junto a uma UTI Aérea, exames, procedimentos médicos, hospital e remédios, em caráter de urgência.
No entanto, desde então, nada foi feito. Então, a família decidiu fazer a transferência de Lili por conta própria. Eles conseguiram juntar em três dias, por meio de uma vaquinha virtual, a quantia de R$ 95 mil para a transferência, correspondente a metade do valor. Mesmo sem a autorização do hospital, a mãe seguiu com ela para a capital paulista.
Desde o dia 19 de setembro, a menina é assistida pela Beneficência Portuguesa e já passou por um cateterismo. Ela ainda aguarda para fazer mais um procedimento cirúrgico, que deve ser realizado antes do fim do mês de outubro. Isabel explica que tudo está sendo feito ‘fiado’.
Nesse meio tempo, a HapVida entrou com um agravo de instrumento, junto ao Tribunal de Justiça de São Paulo, pedindo a suspensão da determinação do TJCE, alegando que ela “apresenta comprometimento neurológico grave e possivelmente irreversível, além de anatomia cardíaca desfavorável e insuficiência cardíaca moderada a importante, circunstâncias que tornam o risco da cirurgia desproporcional em relação à chance de benefício”.
Em 26 de setembro, o relator do processo negou a suspensão. Na última quinta-feira, 9, a Justiça mais uma vez deu 48 horas para o cumprimento da decisão judicial. A família segue fazendo todos os procedimentos e internação sem pagar a conta do hospital, esperando que o plano cumpra a determinação da Justiça.
“Desde o início da internação, todos os dias, o plano se nega a autorizar simplesmente qualquer procedimento com a Lili. E está chegando perto da cirurgia. Isso me apavora muito, porque o plano ainda insiste em negar tudo aquilo que a gente conseguiu por liminar. […] Mesmo assim, não tem nenhuma forma que o plano cumpra com elas para que, assim, a minha filha tenha um tratamento digno e correto”, desabafa a mãe.
Questionada pelo Terra, a HapVida alegou que toda a equipe tem acompanhado a situação da bebê desde o início e que adotou medidas pautadas em critérios médicos, “com avaliações individualizadas e rigorosas, sempre priorizando a vida, a segurança e o bem-estar dos beneficiários”, admitindo que a medida judicial não foi cumprida.
A operadora também disse que, em nenhum momento, houve negativa de procedimento para a paciente e que a família conta com acompanhamento próximo, “inclusive com contato constante da diretora de acolhimento junto à mãe da criança”.
“A paciente já tem a cirurgia autorizada para ser realizada em hospital da nossa rede, com equipe e estrutura hospitalar plenamente aptas para o procedimento, caso essa seja a escolha da família. Não há descumprimento da liminar; a empresa está em tratativas com o hospital externo indicado pela família, onde a paciente já se encontra internada, para ajustes de negociação e de agenda do médico responsável, a fim de garantir o pleno atendimento à determinação judicial”, declarou.
O que é a SHCE
À reportagem, o cardiologista e diretor do Hospital Saint Patrick, Francisco Roberto Martinez, esclareceu que a doença é grave e pode ser fatal. “A condição da SHCE impede que o coração bombeie o sangue oxigenado de forma eficaz para o corpo, o que pode ser fatal quando o canal arterial se fecha após o nascimento”.
O especialista aponta que, geralmente, após o nascimento, a criança apresenta respiração acelerada, falta de ar, pele pálida azulada e é preciso iniciar imediatamente o tratamento, como uso de medicamentos e procedimentos cirúrgicos.
“Os tratamentos envolvem tratamento de emergência inicial com uso de medicamentos para manter o duto arteriovenoso aberto e uma série de cirurgias paliativas que podem ser realizadas em diversas etapas, a depender da evolução do quadro e todas com risco de mobilidade. Geralmente a criança que apresenta esse quadro deve ser encaminhada ao transplante cardíaco visto que a condição é grave e pode ser fatal, infelizmente”, finaliza.
