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GERAL

“Quem vai ajudar?”: parteiras e médicos se unem para suprir abandono em regiões isoladas no Amazonas

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O dom de partejar herdado da avó e da mãe deu à Maria das Dores Gomes Marinho, de 52 anos, a missão de trazer ao mundo incontáveis bebês na região de Tefé, no interior do Amazonas, indo da própria sobrinha até mulheres desconhecidas. “Minha avó era parteira e minha mãe também. Mas eu descobri esse dom de partejar apenas alguns anos depois, quando comecei a trabalhar com outras parteiras. Na verdade, o sangue de parteira sempre esteve na minha veia, né?”, relata Dores ao Terra.

  • Esta reportagem faz parte da série Vozes da Amazônia, que retrata a realidade de comunidades brasileiras (seringueiros, indígenas e barqueiros) que vivem e dependem dos recursos naturais da maior floresta tropical do mundo. 
Dores herdou o dom de partejar da avó e da mãe

Foto: Arquivo pessoal

Oração, música e até mesmo o silêncio. As estratégias usadas pelas parteiras para acalmar as mães no momento da dor variam conforme a necessidade. No entanto, o preconceito enfrentado pelas parteiras ainda é bem grande, mesmo sendo uma prática não remunerada e reconhecida legalmente.

No Amazonas, a Lei nº 4.875, de julho de 2019, instituiu o dia 5 de maio como o Dia Estadual da Parteira, e a Lei Estadual nº 5.312, de 18 de novembro de 2020, permite a presença da parteiras durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, sempre que solicitada pela parturiente, nas unidades de saúde pública e privada.

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“É uma profissão, o preconceito é só porque a parteira não tem estudo. Mas uma coisa eu te digo, as parteiras nunca vão parar, porque tem a necessidade de ampararem essas mulheres grávidas. Se uma mulher cai, descola a placenta e começa a sangra, se o bebê já está com 7, 8 meses… quem vai ajudar? A parteira. Ela vai fazer um remédio caseiro, vai benzer e vai fazer de tudo para ajudar essa mulher”, defende.

Dores teve sua primeira vivência com a profissão ainda aos 10 anos, auxiliando a mãe em um parto, e um dos partos mais difíceis de sua vida ocorreu dentro de uma maternidade. O bebê estava laçado, e as enfermeiras afirmavam que a gestante não estava sabendo fazer força.

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“Na hora que ela fazia força, o bebê ia e voltava. Ai, eu disse: ‘Meu Deus, ela sabe sim fazer força, mas o bebê está laçado’. Fiquei muito preocupada, se eu fizesse alguma coisa errada ou tentasse ajudar, elas [as enfermeiras] ainda iam me culpar. Para minha mãe disseram, muitos anos atrás, que se um parto desse errado, ela seria presa. Até cheguei a ser xingada pelas enfermeiras, então preferi não interferir. Depois que comecei a orar, elas perceberam o laço no pescoço do bebê e conseguiram retirá-lo. Fiquei triste, porque ficaram debochando de mim”, conta.

De acordo com a amazonense, existem parteiras de todos os perfis, de evangélicas à candomblecistas. O fato é que a medicina natural e a fé andam sempre de mãos dadas na hora de ajudar grávidas. Em 2009, Dores passou a fazer parte da equipe do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, que tem como um de seus pilares ajudar comunidades locais na Amazônia com cursos, capacitações e recursos no geral.

O contato com as mulheres assistidas pelo Mamirauá foi essencial para que ela resgatasse o ofício herdado da avó e da mãe. “Logo que comecei a trabalhar no instituto eu vi que eles tinham encontros com as parteiras tradicionais, especialmente na troca de saberes. E foi assim que eu acabei despertando esse dom dentro de mim. Eles observavam que essas mulheres trabalhavam muito nas reservas, nas comunidades, com as condições que tinham. Então eles passaram a ajudá-las”, destaca.

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‘Parteiras têm um dom’

Dores também integra a Associação de Parteiras Tradicionais do Estado do Amazonas (APTAM), que tem como símbolo o algodão-roxo, uma planta medicinal muito usada por parteiras e conhecida por sua propriedade de combater infecções e hemorragias. A APTAM foi criada em 2018 com o objetivo de fortalecer a luta pelo reconhecimento e valorização das práticas tradicionais das parteiras da região.

“Durante os encontros, passei a escutar muitas preocupações das pessoas sobre as parteiras estarem em uma comunidade isolada para fazer o parto. Mas eu falo assim: ‘As parteiras têm um dom, e se foi Deus quem deu, ele garante a vitória’. Eu sei que na hora dos partos muitas vezes elas rezam”, explica.

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Dores integra o Instituto Mamirauá e a Associação de Parteiras do Amazonas, a qual tem o algodão-roxo como símbolo

Foto: Arquivo pessoal

Diferente das colegas parteiras, Dores é uma das poucas que conseguiu obter uma formação na área da saúde. Além de parteira, ela também é técnica em enfermagem com especialização em obstetrícia.

“Eu sei nomes técnicos, mas elas não. Mas vou lhe dizer: minhas experiências em maternidade são muito ruins, infelizmente. Eu tinha um sonho antes de trabalhar lá, mas hoje não quero mais, porque quem fica dentro de uma maternidade é como se ficasse amarrada a um sistema. E muitas vezes, você não consegue ajudar ninguém lá dentro. Parteiras são agricultoras, pescadoras, coveiras, mães de santo, mas são livres e independentes”, afirma.

A amazonense coleciona histórias de partos na comunidade em que vive. Em outra ocasião, ela acompanhava uma amiga também parteira em uma área indígena. Como de costume, as mulheres indígenas preferem, na maioria das vezes, ter os bebês em suas aldeias. Mas, naquele momento, Dores não conseguiu fazer o parto da grávida, porque ela não se sentia bem por não conhecê-la.

“A minha amiga fez o parto e eu fiquei observando. Ela não conseguia relaxar até que eu me afastei um pouco. Por isso é importante ter uma parteira de confiança do lado da grávida, quando ela ficou com a minha amiga, ela relaxou e pariu. Aí me chamaram, porque ela queria que eu cortasse o umbigo”, relata.

Àquela foi a primeira vez que Dores conseguiu cortar um umbigo de um bebê. Ela era traumatizada com a morte de seu pai, que foi assassinado por uma arma branca quando ela tinha apenas 17 anos.

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“Eu ficava imaginando quanta dor meu pai tinha sentido, então, qualquer corte, mesmo pequeno, era uma dor imensa. Mas quando eu cortei o umbigo desse bebê, era como se ele estivesse me curando. Chorei por dentro, mas me mostrei firme e forte na frente dela. Uma semana depois, toda aquela angústia foi embora, passou todo aquele trauma. Hoje, aquele bebê está com 16 anos e eu voltei a ser alegre”, diz a parteira emocionada.

Atualmente, Dores dedica seu tempo à APTM e ao Instituto Mamirauá com objetivo de fornecer suporte a outras parteiras: “Meu papel hoje é de assessorar as parteiras tradicionais. É de correr atrás de conhecimento e do reconhecimento delas. O ser humano precisa estar sempre se atualizando, e com elas não é diferente.”

Parteiras realizam encontros promovidos pelo Instituto Mamirauá

Foto: Instituto Mamirauá

Um parto inesperado salvo por uma parteira

Entre outros problemas enfrentados pelas parteiras, além do preconceito com o ofício, estão a dificuldade no transporte nas comunidades ribeirinhas e a falta de profissionais capacitados em regiões mais isoladas para atender mulheres grávidas. Dentro da comunidade de Dores, uma jovem de 18 anos chegou a falecer dentro de um barco porque não conseguiu chegar a tempo no hospital para parir.

Em 2024, o Brasil 71.088 mortes maternas, segundo o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), ligado à Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente. Os dados apontam o Amazonas como o segundo Estado da região Norte com o maior número de óbitos (1.422), atrás apenas do Pará (2.828).

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Barco usado para a expedição do projeto Doutores das Águas

Foto: Doutores das Águas/Divulgação

Pensando em ajudar comunidades isoladas na Amazônia, o projeto Doutores das Águas surgiu em 2011 pela união de diversos profissionais da saúde que perceberam a necessidade dessas populações de locais longínquos. A médica infectologista Rosana Richtmann está à frente da organização e explica que, ao menos uma vez ao ano, esses profissionais se deslocam para a Amazônia usando um barco-hospital.

“São pequenas comunidades de 120, 150 pessoas que moram às margens dos rios, mas que estão a mil quilômetros de distância de Manaus. Estamos falando em relação a uma distância de transporte fluvial, ou seja, não tem a menor condição de ter assistência à saúde. Se ele precisar comprar um analgésico, porque ele está com uma dor de dente, ele vai ter que pegar uma canoinha e andar umas sete horas com essa canoinha, para poder chegar em algum local onde ele possa encontrar a medicação”, explica.

Entre as histórias mais marcantes que Rosana já vivenciou, está a de um parto. Ao longo de seis anos em que ela integra o time dos Doutores das Águas, a história mais marcante que Rosana viveu foi a de um parto.

“Há uns anos atrás, a gente não tinha ginecologista e fomos chamados por um marido desesperado à noite. Ele veio com uma rabetinha, quem é um barco muito pequeno com motor, e veio nos chamar porque a mulher dele grávida estava sangrando e ele achava que o bebê ia nascer”.

Ainda que naquela época não havia nenhum especialista em ginecologia ou obstetrícia na equipe, Rosana e outros médicos pegaram uma voadeira [barco a motor maior que a rabetinha] e se deslocaram até o local. O primeiro desafio era localizar onde estava a paciente, afinal, estava escuro e não há referências de deslocamento pelo rio. O desafio que a equipe tinha pela frente era grande.

“O meu alívio foi chegar ao local e ver que tinha uma parteira ao lado dessa paciente. E por que digo isso? Porque a sabedoria dessas parteiras que ficam nessa região, isso me deu um alívio enorme. Porque eu sabia que a responsabilidade já não era só minha, tinha alguém com experiência do meu lado, que eu respeitei demais. Eu só me dirigi à paciente depois que pedi autorização para a parteira. Você pode achar estranho um médico fazer isso, mas isso é respeito”, conta emocionada.

Rosana relata que ficou encantada com o respeito que essas comunidades têm por essas mulheres. “Essa senhora me contou que herdou o dom da vó dela, e que ela já estava ensinando a própria neta. Então, é algo que vai de geraçãoem geração. O respeito que eles têm por essas parteiras é incrível. É de uma sabedoria incrível”, acrescenta.

Projeto leva assistência médica à comunidades isoladas

O barco dos Doutores das Águas foi construído para ser um projeto de assistência, tanto médica quanto odontológica. A visita a essas populações isoladas é dividida entre Amazônia profunda e sul do Estado de Roraima. O objetivo é sempre atender populações ribeirinhas – sem nenhum custo – nas mais diversas necessidades que eles precisarem.

“Eles sabem que a gente volta sempre para as mesmas comunidades, então todos os anos, mais pessoas aparecem. Nós saímos de 15 para 72 comunidades, atendendo hoje mais de 2 mil ribeirinhos nessa nossa jornada. A viagem dura em torno de três semanas e o trabalho é totalmente voluntário”, afirma.

Além do dinheiro dos próprios voluntário, o Doutores das Águas também recebe ajuda de empresas parceiras, especialmente na parte odontológica, que é a mais cara.

Dra. Rosana é presidente dos Doutores das Águas

Foto: Doutores das Águas/Divulgação

“Como médica, eu atendo mais de 2.000 ribeirinhos. A odontologia atende pelo menos 1.500 pessoas. Imagina o tamanho que temos em termos de despesa. Seja por causa de combustível, porque a gente vai muito longe, seja por causa de todos os equipamentos que a gente tem que levar, a medicação que a gente deixa para essa população e assim vai. É um projeto extremamente sério”, relata.

Rosana conta que, mesmo em meio às dificuldades para conseguir recurso para o projeto, os voluntários não desistem porque sabem que todos os anos àquelas pessoas estão esperando a visita dos médicos. “O único profissional de saúde que eles veem somos nós, então é um compromisso nosso retornar todo ano. Às vezes, a gente tem que esperar mais para frente no ano até conseguir a verba mínima para a gente se deslocar. Dependemos também da maré dos rios”, diz.

A cada início de ano, o projeto Doutores das Águas começa o caixa com -R$ 450.000. Isso porque cada voluntário precisa pagar sua passagem para Manaus (AM), que é o ponto de partida do barco. Cabe à equipe buscar parcerias e patrocínios para custear gastos com gasolina, mantimentos, equipamentos, logística, entre outros.

Entre os profissionais que participam do projeto estão clínico geral, pediatras, ginecologistas e até cirurgiões. O deslocamento entre cada comunidade pode variar entre um ou dois dias de navegação, e os moradores são previamente avisados sobre o dia em que os doutores atenderão, para que outras pessoas também possam se deslocar para as comunidades base.

O trabalho começa cedo: às 6h da manhã, os voluntários começam a montar a estrutura de atendimento, que se divide entre o barco e outros locais dentro da própria comunidade. A faixa etária do público vai desde um recém-nascido até um idoso.

“Levamos um prontuário médico eletrônico e temos uma internet dentro do barco. Nesses 15 anos de seguimento, tem pessoas que a gente viu nascer e, hoje, já está quase com filho no colo. Nossa estrutura é muito rústica, mas o suficiente para examinarmos os pacientes. Chega uma hora que nós estamos muito cansados. E cansados não é só pelo trabalho, é pelas condições, principalmente a gente que fica fora do barco, fora de ar-condicionado. É muito calor”, afirma.

Rosana diz que as condições climáticas típicas da região Norte podem acabar causando estresse térmico, ou seja, uma sensação ruim por conta do calor excessivo e desidratação. “Todo dia a gente faz um reset no nosso cérebro pra começar tudo de novo. É um trabalho muito intenso”, acrescenta.

Para se ter uma ideia do quão extenso é o trabalho dos Doutores das Águas, atualmente, eles conseguem levar uma estrutura capaz de criar 20 próteses por dia para os moradores das comunidades isoladas. Além disso, há um prêmio chamado “Cárie Zero” para as crianças que conseguem manter a higiene bucal em dia anualmente.

“Imagina alguém que está sem sorrir, sem se alimentar, só comendo coisas kíquidas ou pastosas. E de repente ele ganha uma prótese dentária feita em um dia. Então é outro trabalho maravilhoso”, complementa.

Vista do barco do projeto Doutores das Águas no interior da Amazônia

Foto: Divulgação/Doutores das Águas

Sustentabilidade, educação e sonhos

Enquanto os pais e responsáveis são atendidos ao longo do dia, os voluntários também investem em educadores para distrair as crianças. A oportunidade é o momento ideal para fornecer orientação educacional, principalmente relacionada à sustentabilidade da floresta.

“Nós fazemos uma gincana para ver quem acha mais resíduo pela floresta, na ideia de sustentabilidade, de que o lixo não pode ser descartado de qualquer maneira. E assim vai. Temos um agrônomo para ensinar compostagem, para que eles possam ter autossuficiênia em termos de produção, e assim por diante”, destaca.

De acordo com a médica, tudo é feito com muito respeito com a cultura local. “Isso é inegociável. Eu preciso imaginar que eu estou lá só naquele dia e que não vou mudar nada. Procuramos também levar ensinamentos sobre ginecologia, especialmente para as adolescentes, para ver se a gente consegue melhorar em termos de prevenção de doenças. Elas, geralmente, não sabem como funciona o aparelho reprodutor, não sabem que tem ovário, trompa”, explica.

Ao final de cada atendimento, as famílias ganham um kit, que pode incluir recursos de farmácia, cosméticos, fio de pescar e óculos de leitura, por exemplo. Ao todo, o barco-hospital comporta 34 pessoas. Mas os planos para o próximo ano é de que os Doutores das Águas consigam uma nova embarcação, para levar mais voluntários para essas regiões.

“Se eu conseguisse levar um barco-dormitório, por exemplo, eu poderia levar alunos de medicina e pessoas recém-formadas, seria ótimo pra gente. Além de eu ir como uma pessoa que ensinar essas pessoas, eles vão ter uma vivência única e transformadora, porque a gente precisa conehcer o nosso país. É impossível alguém ir e voltar igual”, afirma. Apesar das dificuldades constatadas nessas regiões Rosana garante que os moradores das comunidades do interior da Amazônia são felizes.

“A hora que você entra no universo deles, você vê como essas pessoas são felizes. Eu vivo perguntando para as crianças se elas querem morar em outro lugar, e elas não querem. Por isso que eu te falo, a gente não pode mudar a cultura local. Eu sempre pergunto para as crianças o que elas querem fazer quando crescer e uma das meninas falou: ‘Quero ser médica para ser do Doutores das Águas’. Me emocionei, era tudo que eu ouvir um dia”, conclui.

* Essa reportagem foi produzida como parte da Climate Change Media Partnership 2025, uma bolsa de jornalismo organizada pela Earth Journalism Network, da Internews, e pelo Stanley Center for Peace and Security.

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