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Após denunciar violência doméstica de vizinha, moradora vira alvo de retaliação: ‘Ameaçou até esfaquear minha filha’

Quando a vendedora Roberta Silva*, de 54 anos, se mudou para um condomínio fechado no bairro de Socorro, na Zona Sul de São Paulo, há cerca de três anos, jamais imaginou que aquele seria um passo para o fim da sua paz. Após tentar proteger uma vizinha de um episódio de violência doméstica, virou alvo de constantes xingamentos e ameaças, envolvendo até a filha adolescente. E o que era para ser um lugar de conforto e segurança, se tornou um espaço de muito medo.
- Esta reportagem faz parte da série Vizinhança em Guerra, que aborda a crescente violência em condomínios na cidade de São Paulo a partir das histórias de moradores vítimas de agressões físicas, verbais e até emocionais.
Segundo contou ao Terra, o caso começou poucos meses após Roberta se mudar para o empreendimento. Certa vez, ela ouviu gritos de socorro e barulho de briga. Ao conversar com outros moradores, conseguiu identificar a unidade em questão. Quando ocorreu outro episódio, a polícia foi acionada; ela autorizou a entrada dos agentes no condomínio e apontou o apartamento da vizinha. Não se sabe o que foi tratado com o casal, mas ninguém foi preso naquela ocasião e, por algum tempo, cessaram os pedidos de ajuda.
Na mesma época, a vendedora, juntamente com outros moradores, organizou uma campanha de conscientização contra a violência doméstica, distribuindo informes aos condôminos e realizando palestras para que as mulheres aprendessem a identificar e denunciar agressões. Entretanto, em determinado momento, ela passou a ser alvo de retaliações da vizinha.
“Ela [a vítima de agressão] se voltou contra mim. Eles continuaram o casamento, e ela acha que eu invadi a relação deles. Em um dos dias em que chamei a polícia, ela estava apanhando, quase pendurada na janela e aos gritos. Agora, ela fica ligando constantemente — liga de madrugada, à tarde, de manhã, à noite —, briga, reclama para o síndico, diz que eu faço barulho e, na última ligação, me ameaçou de morte e disse que ia esfaquear minha filha.”
Por causa das ameaças verbais, Roberta se viu obrigada a pedir uma medida protetiva contra a vizinha. Ela conta que chegou a tentar uma reunião de reconciliação mediada pela administração do condomínio, mas a mulher — que ainda vive com o companheiro agressor — recusou o convite. O caso segue sem resolução, deixando a denunciante, que trabalha fora, assim como o marido, em constante receio de permitir que a filha adolescente circule pelas áreas comuns do condomínio.
Outro conflito verbal que Roberta vivenciou foi com o ex-síndico do prédio. De acordo com ela, o profissional indicado pela construtora era pouco transparente em relação aos gastos do condomínio e não costumava realizar obras de manutenção, o que, com o tempo, deixou o empreendimento com aspecto de abandono. Com o passar dos meses, ela resolveu investigá-lo por conta própria, solicitando documentos em assembleias para entender o motivo de tanto descuido. Na época, segundo relatou, o síndico alegava que a inadimplência era o principal motivo da situação do edifício.
Entretanto, conforme Roberta contou, ao obter acesso aos documentos percebeu que diversas licenças importantes estavam vencidas e que recursos essenciais do prédio, como água e luz, corriam risco de corte por falta de pagamento. Decidida a resolver a situação, conversou com outros moradores, presencialmente e por WhatsApp, e propôs o impeachment do síndico. Foi então que passou a receber ligações ameaçadoras. “Ele me ligava, ameaçando, dizia que ia me processar, que ia processar o condomínio, que ia tirar meu apartamento. Falava que estava no fim do mandato e que sairia de boa — isso se não fosse reeleito”, relembrou ela, que, após mobilizar os moradores, conseguiu retirar o profissional do cargo.
Briga por causa de cachorro
Assim como Roberta, a aposentada Maria Gorete*, de 69 anos, também já foi ameaçada por um vizinho em um condomínio na Zona Leste de São Paulo. E o motivo da violência, segundo ela, foi o seu cachorro, um basset dachshund de pelo curto, que era conhecido no prédio por ser arisco. Ela admite que já havia recebido reclamações verbais de outros vizinhos, mas reforça que o animal sempre andava de coleira ou no colo da tutora e jamais machucou ninguém.
Um dia, ao sair do empreendimento, colocou o animal no chão para que ambos pudessem caminhar pela calçada. Entretanto, uma criança se aproximou, e o cachorro, assustado, avançou contra ela. Apesar de não ter havido mordida, a situação assustou a menina, que chorou. Isso foi o suficiente para que o pai se irritasse com a dona do pet.
No confronto verbal, o homem chegou a ameaçar matar o cachorro com uma arma de fogo. Depois disso, Maria passou alguns meses sentindo medo intenso em casa. “Eu temia não só pela vida do cachorro e pela minha, mas também pela dos meus filhos. Imagina se eu estivesse trabalhando e ele atirasse em algum deles, que costumavam passear com o cachorro?”, disse ela, que se arrepende de não ter formalizado uma queixa contra o homem ao síndico.
Injúria: delito recordista nos últimos 5 anos
Casos de violência verbal, como os relatados por Roberta e Maria Goret, são cada vez mais frequentes na capital paulista. De acordo com levantamento realizado pela reportagem do Terra, com base em dados da Secretaria Municipal de Segurança Pública de São Paulo, entre os meses de janeiro e julho dos últimos cinco anos, foram registrados 9.338 casos de violência em empreendimentos e edifícios. Desse total, 3.963 ocorrências foram de injúria (art. 140), atual delito recordista em números absolutos.
De acordo com o Código Penal Brasileiro, “injúria consiste em ofender a dignidade ou o decoro de alguém, ou seja, atingir diretamente o valor moral, a honra subjetiva da pessoa”. Um exemplo prático disso é quando se xinga o outro com palavras consideradas ofensivas. No português popular, trata-se da violência verbal — o famoso bate-boca, a discussão. Apesar de parecer inofensiva, a palavra pode reverberar de formas diferentes para cada um, principalmente em um ambiente de constante estresse.
Muito além da injúria (art. 140), casos de violência verbal em condomínios também podem ser enquadrados em outros delitos, como difamação (art. 139) e calúnia (art. 138). Costuma-se evocá-los quando se imputam falsas acusações ou quando se fere a reputação de alguém. Em situações práticas, isso pode ocorrer, por exemplo, quando um condômino comenta que o outro traiu o cônjuge com a intenção de expor e ridicularizar, ou quando um vizinho afirma, em um grupo de WhatsApp do prédio, que outro morador roubou uma bicicleta sem apresentar qualquer prova. O caso de Roberta, acusada falsamente de fazer barulho, também se enquadra nesse tipo de situação.
Assim como a injúria (art. 140), esses delitos também demonstraram aumento expressivo nos últimos cinco anos na cidade de São Paulo, embora em menor escala.
Como resolver a violência verbal em condomínios
Baseado nos casos citados anteriormente, o presidente da Associação de Síndicos de Condomínios Comerciais e Residenciais do Estado de São Paulo (Assosíndicos), Renato Daniel Tichauer, argumenta que o primeiro passo na resolução de problemas em condomínios deve sempre ser o diálogo e, se necessário, a aplicação de medidas administrativas.
“[É importante registrar queixa e tentar uma conciliação]. O caminho deve sempre ser o das medidas administrativas e, se não houver resultado, a aplicação de medidas financeiras, com multas de até o décuplo — ou seja, até 10 vezes o valor da taxa mensal —, conforme prevê o Código Civil.”
Em contrapartida, Christiane Faturi, vice-presidente da Associação Nacional dos Síndicos e Gestores Condominiais (ANSINDICOS), enfatiza que, ao sinal de qualquer tipo de violência, mesmo que verbal, uma autoridade deve ser acionada. “Sempre que ocorrer ameaça ou violação da integridade física ou moral dos moradores”, afirma.
Conforme Renato, síndicos e moradores têm o dever de registrar queixas de abusos — sejam eles verbais ou de outras naturezas — que ocorram nas áreas comuns ou dentro de uma unidade autônoma. Entretanto, caso multas e advertências não surtam efeito, há caminhos mais drásticos a serem percorridos. “Nesses casos, pode-se analisar a possibilidade do artigo do condômino antissocial”, cita ele, referindo-se ao dispositivo que permite a expulsão de um morador considerado nocivo ao ambiente condominial.
O especialista reconhece que, muitas vezes, não há solução rápida ou totalmente eficaz para conflitos verbais em condomínios. Ainda assim, ele recomenda que síndicos orientem seus condôminos e até sugere a realização de palestras sobre convivência comunitária. “Na minha visão, é preciso conscientizar os novos condôminos, que nem sempre têm a cultura do que é viver e conviver em condomínio. [Explicar] que deve-se preservar o bom senso e o direito de vizinhança. Afinal, direitos e deveres devem ser cumpridos por todos.” Em casos em que o diálogo, a reconciliação e as multas não resolvam, ambos os especialistas recomendam recorrer à Justiça.
Violência verbal pode afetar a saúde
Consultada pelo Terra, a psicanalista Cintia Castro, que atuou por anos como mediadora em conflitos condominiais, afirma que viver em um ambiente de constante ameaça ou brigas pode, sim, trazer prejuízos à saúde mental. Para ela, é necessário estar atento, pois a sensação de “prisão domiciliar” — quando a pessoa se isola para evitar conflitos — é o principal sintoma.
“Quando você tem uma briga pontual que não afeta o seu cotidiano, trata-se apenas de um momento de raiva ou fuga. Mas, quando isso começa a impactar sua rotina, você passa a se isolar, evita frequentar áreas comuns, se afasta dos vizinhos, sai de grupos de WhatsApp — é um sinal de alerta. A primeira coisa a se fazer é pedir ajuda a quem mora com você. Se não houver essa possibilidade, procure ajuda profissional, porque você pode desenvolver um sofrimento interno que não conseguirá externalizar”, explica.
Para Paulo Porto, PhD em Psicologia Clínica e professor da PUC-PR, o estresse de conviver sob constantes xingamentos e ameaças varia de pessoa para pessoa. “A sintomatologia do medo, muitas vezes, se assemelha à da ansiedade: pode haver queda de cabelo, manchas na pele […]. Algumas pessoas somatizam por meio do sistema digestivo, desenvolvendo gastrite, excesso de gases e, em alguns casos, diarreias crônicas. Outras são mais afetadas no sistema imunológico, adoecendo com facilidade. Também há quem apresente dores de cabeça, enxaquecas […] ou sintomas no sistema circulatório, como arritmias, ou ainda dificuldades respiratórias, tornando-se mais ofegante.”
Caso os sintomas sejam ignorados, a pessoa pode, futuramente, desenvolver quadros como:
- Agorafobia – A vítima evita áreas comuns, o que compromete sua qualidade de vida.
- Depressão – O estresse constante afeta o equilíbrio emocional.
- Crises de pânico – Viver sob ameaça impede a pessoa de ter paz dentro de casa.
- Crises de ansiedade – A situação vira um gatilho constante.
- TEPT (Transtorno de Estresse Pós-Traumático)
- Problemas físicos – Insônia, dores de cabeça, pressão alta e até tricotilomania.
“O lar deve ser um porto seguro. Se ele se torna uma fonte de angústia, é preciso agir — seja mudando o ambiente, seja fortalecendo a própria mente” — Paulo Porto
