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CIDADES

Com fundo milionário, reduto do Centrão em Alagoas deixa moradores sem remédio

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Os pouco mais de 6 mil habitantes de Roteiro (AL) contam com três postos de saúde, uma máquina de ultrassom e verba milionária na prefeitura enviada por meio de emendas parlamentares de Arthur Lira (PP), presidente da Câmara dos Deputados. Nada disso, porém, impediu a cidade de ficar por meses sem estoque de remédios básicos, como dipirona, antibióticos e anti-inflamatórios, e sem conseguir fazer exames.

No papel, tudo parece bem. O município é um de vários que, de 2019 para cá, aumentaram os números declarados ao SUS, o que permite às cidades receber mais dinheiro do governo federal. No ano passado, o Fundo Municipal de Saúde de Roteiro recebeu R$ 3,8 milhões do governo. Desde 2019, foram R$ 13,8 milhões em recursos da União.

O montante deveria ser suficiente para a saúde pública de Roteiro ser menos precária. Para efeito de comparação, a vizinha Barra de São Miguel recebeu menos, R$ 11,8 milhões, e tem uma população 24% maior.

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Uma parte do valor, R$ 2,5 milhões, foi enviada por Lira, em 2021 e 2022, em emendas de relator, modalidade inventada na gestão Jair Bolsonaro e usada como moeda de troca na relação política com o Congresso. Lira foi o único deputado a enviar verbas nessa modalidade para o fundo de saúde do município, de acordo com o sistema de transparência do Congresso.

A pequena cidade, próxima ao litoral e cercada por canaviais, é administrada por Alysson Reis, do PP, aliado de Lira. Até poucos anos atrás, havia esgoto a céu aberto nas principais ruas. Hoje, o município está mais desenvolvido, tem uma escolaridade alta na comparação com outras cidades do estado e uma população economicamente ativa dentro da média brasileira.

Em todo o Brasil, nos últimos anos, prefeitos usaram os repasses milionários em emendas de relator para desafogar os custos com materiais de enfermagem, combustível, conta de luz, água, telefone, entre outros. Assim, puderam usar os repasses obrigatórios do Ministério da Saúde para arcar com remédios e despesas com pessoal no sistema de saúde.

No caso de Roteiro, não é possível obter qualquer explicação sobre o destino dos R$ 13,8 milhões em verbas federais. O Portal de Transparência do município informa estar “em manutenção” e os últimos contratos publicados no site da prefeitura são de 2020. A coluna esteve na cidade e pediu informações na Secretaria de Saúde, que disse não ter controle sobre as despesas; na prefeitura, os dados também não foram fornecidos.

Se os pagamentos da cidade não são transparentes, é possível garantir que pelo menos um não ocorreu: a compra de remédios. A cidade integra o consórcio de prefeituras de Alagoas para compras de medicamentos e insumos de saúde, o Conisul, que recebe três vezes por ano encomendas dos municípios para medicamentos a preços abaixo dos de mercado.

Na última leva de pedidos feitos ao Conisul, no fim de 2022 e no começo de 2023, os servidores tentaram, sem sucesso, fazer compras. A prefeitura recebeu os pedidos dos funcionários do SUS, mas não emitiu a ordem de pagamento, alegando não haver recursos naquele momento.

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Por conta disso, a cidade ficou sem remédios durante vários meses no primeiro semestre. O problema foi sanado só agora, na segunda leva de pedidos do Conisul de 2023, que acaba de acontecer.

Não era o único problema. Funcionários da Saúde local relataram que, há cerca de um ano, falta material para fazer exames de sangue, urina e fezes. Servidores lembraram que chegaram a fazer partos sem antes realizar uma simples análise de urina das mulheres grávidas, por falta de material. A escassez, segundo pessoas ouvidas pela reportagem, também está sendo resolvida só agora, com compras recentes.

A Prefeitura de Roteiro não informou à coluna exatamente quanto tempo cada estoque ficou esgotado, mas, nas farmácias da cidade e nos postos de saúde, a informação é que houve de três a seis meses de falta de dipirona, antibióticos e anti-inflamatórios, entre o fim de 2022 e o momento atual. A dipirona, para febre, ficou em falta por cerca de três meses.

A aposentada Maria José dos Santos Felisdoro, de 70 anos, teve que pedir à neta que comprasse os ansiolíticos que precisa tomar. “Uso remédio para dormir. No posto não tinha. Foi R$ 100 e tantos, lá em Maceió”, contou. Usuária do sistema de saúde, costuma viajar para fora da cidade para fazer exames e cirurgias e acaba usando pouco os postos de Roteiro. “O prefeito não está se incomodando com nada. A cidade está abandonada”, acrescentou seu marido, Antonio Felisdoro. Os dois moram na cidade há 38 anos.

Natália PortinariMaria Felisdoro, moradora de Roteiro (AL)
Maria Felisdoro, moradora de Roteiro: sem o básico de remédios, cidade também não oferece os ansiolíticos de que precisa

“Eu cansei de comprar remédios básicos, como de diabetes, para ajudar as pessoas”, disse o ex-vereador de oposição Flávio Ribeiro. “Hoje mesmo levei duas pessoas para fazer exame numa clínica particular em São Miguel dos Campos.” O vereador queixou-se da falta de transparência e afirmou que o município ignorou seus requerimentos por informações sobre despesas.

Nos números de produtividade informados pelo município ao DataSUS, sistema de dados do SUS, a situação é outra. Em 2019, a cidade registrou 12,4 mil atendimentos; em 2022, foram 24,3 mil. Antes, Roteiro dizia não fazer visitas domiciliares. No ano passado, disse ter visitado 10.573 residências, número muito superior aos 6,6 mil habitantes.

Ainda de acordo com servidores do sistema de saúde de Roteiro, que não quiseram ser identificados, há equipe disponível para cerca somente de mil visitas no ano, um décimo do valor reportado ao SUS.

Os atendimentos informados pelas prefeituras no DataSUS servem de parâmetro para envio de verba. Falsificações em diversos municípios estão sendo investigadas, sob sigilo, pelas superintendências da Polícia Federal nos estados. O Ministério da Saúde analisa dados de 467 municípios cujos dados dos últimos anos são considerados discrepantes.

A coluna perguntou à Prefeitura de Roteiro quais foram as despesas realizadas com o Fundo Municipal de Saúde nos últimos anos, pediu cópia dos contratos com fornecedores, dados sobre dispensa de medicamentos, comprovação das visitas domiciliares e outras informações, mas não obteve resposta. O presidente da Câmara, Arthur Lira, responsável pelo repasse a Roteiro por meio de emendas parlamentares, também foi procurado, mas não respondeu.

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