CIDADES
‘Falar dói, mas calar dói ainda mais’, diz funcionária ao denunciar colega por assédio em restaurante de alto padrão

“Dói porque eu só queria ser respeitada. Só queria trabalhar em paz. Assédio não é elogio, e silêncio não é consentimento. Falar dói, mas calar dói ainda mais”. Esse é o relato de Juliana*, uma funcionária do restaurante de alto padrão, Fazenda Churrascada, localizado no bairro do Morumbi, em São Paulo.
Com exclusividade, ela contou ao Terra que sofreu assédio sexual por parte de um funcionário do local. O caso é relatado em uma ação trabalhista contra o estabelecimento. Com ela, são pelo menos seis mulheres que alegam ter sofrido algum tipo de assédio dentro do local, com funcionários diferentes. Em 2023, a reportagem ouviu cinco delas.
A jovem começou a trabalhar no restaurante no começo de 2024. Contratada como cumim, ela, na verdade, atuava como garçonete. Afastada das funções desde abril, após laudo psiquiátrico, ela conta que não chegou a relatar o caso à Polícia Civil por receio. Então, decidiu fazer a denúncia em uma ação trabalhista, assim como as demais mulheres que relataram sofrer algum tipo de assédio no local.
Ela conta que teve muita dúvida se continuava com a ação. Tinha medo que o suspeito que lhe dirigia a palavra de maneira maliciosa fizesse algo, já que, segundo a profissional, ele a havia ameaçado algumas vezes.
Ao ser questionada, ela conta que é difícil entender como tudo começou a “desandar”, já que no início, o homem, que também tem o mesmo cargo dela, só fazia “elogios”. “Dizia que eu estava bonita, que [desejava que] meu dia fosse tão maravilhoso quanto eu. Eu achava normal, achava que era só gentileza”, afirma.
Mas, aos poucos, as palavras começaram a mudar de tom. Depois de bonita, ela passou a ser chamada de “delícia” e “gostosa”. “Eu lembro do desconforto que senti…aquele nó no estômago. E foi ali que eu percebi que não era só brincadeira, era desrespeito”, relembra.
O deboche diante da negativa
Juliana chegou a pedir que ele parasse, que não a olhasse mais daquela maneira e se afastasse. A partir da negativa, o rapaz passou a tratá-la com ignorância e deboche. Ele fazia piadas, falava do namorado dela, o chamava de “corno”. Ela fingia não ouvir e seguir com o trabalho, mas, por dentro, sentia vergonha, medo e raiva.
“A gente trabalhava lado a lado e, às vezes, quando levava as bandejas, ele encostava na minha mão. De propósito. Tinha momentos em que ele passava por trás de mim, passava a mão na minha bunda ou encostava no meu corpo, como se fosse ‘sem querer’. Eu tentava me afastar, fugia sempre que podia, mas era constrangedor demais. Me sentia intimidada, sem saber o que fazer”, relata.
A jovem conta ainda que, ao fechar a cara quando isso acontecia, o homem parecia ficar “satisfeito” em vê-la desconfortável. O tempo foi passando, e as provocações viraram discussões.
“Ele é tão nojento que, quando vinha me ameaçar, ficava rindo como se estivesse conversando normal, isso me dava mais medo. Fiquei com tanto medo que comecei a pedir para sair mais cedo, só para não cruzar com ele na saída do trabalho. Eu não queria mais dividir o mesmo espaço, o mesmo ar”, revela.
Ela passou a ter crises de pânico. Vomitava antes de sair para trabalhar, não conseguia dormir. “O medo tomou conta de mim”, afirma. O parceiro dela chegou a intervir e, mesmo assim, o funcionário não a deixava em paz.
Foi então que ela decidiu propor um ‘acordo’ com o restaurante, assim, seria mandada embora e se livraria da situação, contudo, o local não aceitou. No processo, que tramita no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região de São Paulo, ela relata que, ao contar o caso aos superiores, foi colocada de frente com o homem, em uma sala fechada, e lhe foi exigido que o confrontasse diretamente. Depois disso, sua psiquiatra a afastou. “Eu não consigo mais vê-lo. Não consigo mais imaginar ele naquele ambiente”, afirma.
Cara a cara com o suspeito mais uma vez
No último dia 29, Juliana compareceu à audiência do caso, na qual pede o reconhecimento do vínculo empregatício durante um período que ficou sem registro, o acerto de pagamentos e faz a denúncia do assédio sexual. Para sua surpresa, a empresa levou o homem a quem ela denunciava para ser testemunha.
“O medo dele é tão forte que só de falar dele eu choro. […] Não imaginava que ele ia, quando olhei para trás, ele estava lá, não consegui me controlar, a minha crise de ansiedade foi no auge”, revela Juliana.
Com a situação, a defesa da vítima, representada pela advogada Luciana Pereira Leopoldino, pediu a aplicação da resolução que estabelece o protocolo de julgamento sob perspectiva de gênero e o adiamento da presente sessão, “tendo em vista que a pessoa acusada de assédio sexual em face da reclamante [restaurante] se encontra na sala de espera”.
Na ocasião, a juíza Claudia Tejeda Costa deferiu o adiamento, “informando à reclamada [o restaurante] que o funcionário não será ouvido como testemunha, não devendo comparecer na próxima audiência”.
Sobre o caso, o Heat Group, responsável pelo restaurante, afirmou que repudia veementemente qualquer forma de assédio, abuso ou discriminação. Segundo o grupo, todos os colaboradores, ao ingressarem na companhia, recebem o Código de Ética e Conduta e são informados sobre a existência de um canal de denúncias independente, que garante o registro seguro e confidencial de qualquer ocorrência.
“A empresa esclarece que não há registro, em seus canais de ética, de denúncia relacionada ao caso mencionado. Desde que tomou conhecimento dos relatos pela via judicial, uma apuração interna foi iniciada e o colaborador citado está afastado de suas funções até a conclusão do processo”, declarou em nota. O Heat Group menciona ainda que promove treinamentos e palestras periódicas sobre ética, diversidade e conduta profissional.
Apesar da empresa negar, dentro do processo consta um print em que a vítima encaminha um atestado à um gerente da casa e avisa ter tido crises de pânico devido ao assédio sofrido (veja acima).
Outros casos
O Terra teve acesso à outros casos envolvendo assédio sexual por parte de funcionários do Fazenda Churracada. O último processo a ser sentenciado é de Lilian*, com resolução em 25 de setembro deste ano. Na ação, o juiz aponta que a vítima conta que um dos gerentes da casa a tratava com piadas de mau gosto ao se referir a partes de seu corpo dizendo, “o quanto a bunda era linda” e ficava olhando de “forma maliciosa para estas partes”.
O homem, ao receber o pedido de aumento das comissões sobre as vendas realizadas, a chamava para ir ao estoque. “Ficamos lá meia hora e dou aumento pra vocês”, destaca a juíza Shirley Aparecida de Souza Lobo Escobar uma das falas mencionadas. Na decisão, a magistrada estabeleceu a pena por danos morais em R$ 11. 325,92.
O gerente acabou mandado embora. Sobre esse caso, o Heat Group esclareceu que também não há registro em seus canais de denúncia e nem com as lideranças do restaurante. “O colaborador tercerizado foi desligado em junho de 2024, data anterior ao recebimento do processo movido pela ex-colaboradora, por questões de performance nas suas funções diárias no trabalho”, declarou em nota.
Os dois casos não são únicos. Em 2023, a reportagem contou a história de cinco mulheres que afirmavam terem sido assediadas por um maitre do restaurante. Quatro delas entraram com processo trabalhista, sendo que duas fizeram acordos e as demais ganharam o processo. Ele foi demitido após a reportagem entrar em contato com o restaurante.
Sobre os casos, a advogada das vítimas, Luciana Pereira Leopoldino, afirma que essas mulheres não buscam vingança, mas justiça, dignidade e o direito de trabalhar sem medo.
“Infelizmente, a repetição de denúncias semelhantes em um mesmo local de trabalho mostra o quanto ainda é necessário fortalecer políticas internas de acolhimento e prevenção. Ninguém pode controlar integralmente as ações individuais, mas toda empresa pode escolher como reagir diante da dor de uma mulher: com humanidade, escuta e responsabilidade. Seguimos firmes em nossa missão de defender mulheres com coragem, respeito e sensibilidade”, finaliza.
