Foi questão de segundos. Estava escuro e muito frio. Gabrielli Vicente, de 25 anos, e sua família dividiam um barco com mais de dez pessoas. Eles ficaram dois dias ilhados no segundo andar do sobrado em que moravam no bairro Harmonia, em Canoas. A casa era de madeira, e a água estava tomando conta de tudo. Subiu mais de quatro metros. No resgate, com o vai-e-vem de barcos e jet skis, além da correnteza, espécies de ondas se formaram, e o barco virou.
- Essa reportagem faz parte da série O peso da Água, que aborda os traumas e as marcas dos moradores do Rio Grande do Sul mesmo um ano após as enchentes históricas. O Terra passou pelas cidades de Eldorado do Sul, Porto Alegre, Canoas e São Leopoldo.
Gabrielli segurava um de seus filhos no colo, Gabriel, de dois anos. As gêmeas Agnes e Ágata, de cinco meses, e Alice, sua filha mais velha, de sete anos, se dividiam entre os demais presentes no barco. Todos se afogaram, mas foram puxados de volta por pessoas de embarcações próximas. As crianças estavam salvas, confirmaram. Mas, quando a família conseguiu se reencontrar, não foi bem assim.
Uma das gêmeas — Agnes– ficou para trás. Os segundos tornaram-se dias, semanas e meses em busca de respostas. E só agora, um ano depois das enchentes históricas que deixaram boa parte do Rio Grande do Sul debaixo d’água, Gabrielli se permite viver o luto.
Mesmo se sentindo mal por causa da pressão alta, Gabrielli me recebeu em sua casa com a pequena Ágata no colo. O local não é o mesmo no qual ela ficou ilhada na enchente, que era um puxadinho em cima da casa da sogra. “Uma casa cinco por cinco”, que se perdeu. Com a repercussão de sua história, e as doações que recebeu, conseguiu dar entrada no novo cantinho. Depois das chuvas, os imóveis afetados baratearam muito –e esse era um deles. A proposta da família Vicente não foi das melhores. Mas a dona sentiu no coração que era isso e vendeu.
O caminhar lento e o olhar triste traduzem muito da história dessa mãe, que precisou se virar como pôde para seguir a vida mesmo diante de todas as dificuldades do último ano. Mas basta ela começar a falar da Agnes para o sorriso tomar conta de seu rosto. Um sorriso que não esconde a saudade, mas que aquece a sua alma.
“Aproveito toda oportunidade para falar dela. É muito difícil achar alguém que goste, que deixe eu falar dela, porque pra todo mundo machuca. Mas pra quem perdeu alguém assim, quanto mais a gente fala, melhor a gente se sente” — Gabrielli Vicente
Era sábado, 4 de maio de 2024, quando Gabrielli e sua família foram resgatados. Após caírem do barco, cada um foi para um canto –e as crianças, para o hospital, por causa do afogamento. Foi só no momento em que conseguiu chegar até a médica de uma das gêmeas que ela descobriu que só tinha uma bebê lá, não duas. No domingo, quando conseguiu encontrar o seu esposo, as buscas por Agnes começaram.
Ela ia perguntando de pessoa em pessoa se reconheciam a sua filha, mostrava em foto, em meio ao caos da enchente que fez com que a maioria dos municípios do Rio Grande do Sul declarasse estado de calamidade ou de emergência. Em Canoas, segundo dados do governo estadual, 45,4% da população foi atingida –cerca de 157,8 mil pessoas.
Foram muitas coisas ao mesmo tempo. Além de não saber onde uma das gêmeas estava, a outra podia deixá-la a qualquer momento. Chegou a ter uma parada cardíaca, entrar em coma e ficar sedada. Alice, a filha mais velha, também passava mal, e o Gabriel, o único filho menino, só se alimentava se Gabrielli estivesse do lado. E foi no Dia das Mães, oito dias depois do afogamento, que ela recebeu a notícia mais dura da sua vida: a confirmação da morte da bebê desaparecida.
A gaúcha conta que não a deixaram reconhecer a filha pessoalmente. Teve de ser por foto. Uma foto sem rosto, com o corpo da menina em um saco de lixo. A certidão de óbito que recebeu não tem nome, e a causa da morte é apontada como “desconhecida”. Embora o documento esteja incompleto, o nome de Agnes aparece na listagem de óbitos de Canoas ao lado de outros 30 nomes, segundo apurado pelo Terra.
O corpo da menina foi velado e enterrado no dia 16 de maio. Mas, para a mãe, ainda restava a dúvida se era sua bebê mesmo. Foram meses de incansáveis buscas sem qualquer resposta. E só no início de 2025, com a ajuda de um delegado de Canoas, que ela encontrou a confirmação que precisava. O DNA era de Agnes. A descrição da menina, da roupinha que usava quando foi encontrada, batia com o que consta no inquérito. Agora, há certeza. Por mais que ainda não saiba com detalhes como ela foi encontrada.
“Queria exame de necropsia, não tá pronto ainda. Vai fazer um ano. Não tem o resultado da causa da morte. Mesmo me doendo, é uma coisa óbvia, mas não tem. É uma certidão de óbito sem nome”, desabafa a mãe ao mostrar o documento, que, para ela, é muito mais do que um simples papel.
“Agora, a gente pode viver o luto, sabe? Agora é como se o nosso coração tivesse descansado por ter as respostas. Porque antes o coração estava a mil, que nem no começo, sabe? Se realmente era pra ela, onde que ela tava… Mas agora a gente pode viver um luto, um dia de cada vez”.
O Terra questionou a prefeitura de Canoas sobre o atestado de óbito sem nome, mas não obteve resposta até a publicação desta matéria. O espaço segue aberto.
Foram registradas 184 mortes no Rio Grande do Sul, em decorrência da enchente, segundo última atualização da Defesa Civil divulgada neste mês de abril. Desde agosto passado, eram 183 vítimas. Ao todo, 25 pessoas seguem desaparecidas, segundo registros oficiais do governo estadual.
A reportagem solicitou à Defesa Civil dados sobre os perfis de gênero e idade das vítimas, assim como tentou por meio do Instituto-Geral de Perícias (IGP), Polícia Civil, Corpo de Bombeiros, Secretaria de Segurança Pública e à assessoria de imprensa do Governo Estadual, e não obteve essa resposta. Segundo a Defesa Civil, não estão fornecendo essas informações.
‘Recaídas são de noite’
Conversei com Gabrielli por cerca de 40 minutos. Em todo esse tempo, não vi cair uma lágrima de seus olhos. Às vezes, ela pedia um momento para se recompor. Mas é como se ela não tivesse mais lágrimas para chorar. Ao menos não na frente de outras pessoas, muito menos na frente dos seus filhos.
Ela se mostrou gentil, cuidadosa com as palavras e contou sua história com amor. Gabrielli diz confiar no propósito de Deus, e isso a conforta. Mas, apesar de toda força, ela conta ter recaídas, mas só de noite, quando está sozinha.
“A hora que está todo mundo dormindo é o meu momento. Que daí eu sei que eles não vão me ver chorando. Porque eu não quero passar para eles que eu estou triste. Eu tenho que ser o mundo deles. Estar estável para eles ficarem estáveis. Já aconteceu deles me pegarem chorando e choram junto. Então eu prefiro sempre passar para eles que estou bem. Para quem conversa comigo, sempre eu passo que eu estou bem. Mas por dentro…”.
Gabrielli passou –e passa– por todo esse processo sem nenhum apoio psicológico. Quando soube que a menina desapareceu, usou suas redes sociais para potencializar a busca. Sua história repercutiu e, hoje, ela soma mais de 170 mil seguidores. Com a visibilidade, muita gente a procurou para oferecer ajuda psicológica a ela e a Alice, sua filha mais velha. “Me escutavam, depois me mandavam pra outro [psicólogo] e assim foi. Passei por umas 5 ou 7 psicólogas. Na questão da Alice, falaram que ia ser de graça, mas na segunda consulta já ficaram falando de valores”, explica.
A jovem de 25 anos diz que não tem como arcar com os tratamentos e que quando encerrou o caso –com a confirmação da morte da bebê–, ninguém mais a respondeu. Por parte da prefeitura, ela diz que também não teve nenhum apoio ou direcionamento. “Não recebemos ajuda de nada. A prefeitura nunca me procurou para ajudar em nada, nem nas buscas”. A única participação que relata é a de duas assistentes sociais, que a teriam coagido quando suas filhas ainda estavam internadas e sua história começou a atrair a imprensa. “Falaram que iam tirar meus filhos de mim, porque eu estava muito exposta”, relembra.
Gabrielli está sem terapia há cerca de 7 anos. Ela contou que teve acompanhamento psicológico desde os 14 anos por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), em unidades básicas de saúde (UBS), e que sua mãe chegou a pagar sessões particulares para ela. Com o tempo, acabou deixando a terapia de lado por ficarem “mandando-a de um para o outro”. A deixava exausta ter que sempre contar toda sua vida de novo. Até que, quando teve Alice, não encontrou mais psicólogos disponíveis pelo sistema público.
Ela nunca usou medicação para auxiliar no tratamento psicológico. A primeira vez que tomou sertralina, para ansiedade, foi quando ganhou as gêmeas. O parto das duas foi traumático. A gestação foi descoberta com seis meses, e ela deu à luz com sete. As meninas ficaram mais de um mês na UTI neonatal.
“Eu tinha crises de choro por ficar com dois corações no hospital e dois em casa, e fui muito maltratada no parto. Acumulou muita coisa, e iniciei a medicação até elas ganharem alta”. Atualmente, por mais que tenham indicado, Gabrielle não faz mais uso do remédio. O que sente falta é de ter alguém para conversar, que entenda a situação, para ela compartilhar toda sua dor.
A preocupação de Gabrielli é dar tudo de melhor para os filhos. Mas, além da falta de apoio psicológico, também tem enfrentado dificuldades com relação à saúde deles, que não foi mais a mesma depois da enchente. Nossa conversa, em sua casa, foi interrompida algumas vezes pela tosse da pequena Ágata, que estava em seu colo. “Não passa por nada. Ela precisava de uma consulta com um neuro, mas em Canoas é difícil. Falaram que ela precisava fazer alguns exames para ver se não ficou com sequelas”.
Gabrielli também não recebeu os R$ 5.100 pagos em parcela única pelo governo federal. Ela perdeu tudo, se enquadraria no benefício. Pelo que explicou, rejeitaram seu direito por causa de alguma questão burocrática, do envio dos documentos. O que tem certeza, é que não recebeu.
Ela quer escrever um livro contando a história de sua família. O projeto está em andamento. Para o futuro, também deseja voltar a estudar e fazer uma faculdade. Os sonhos são muitos. A vida segue. Mas, por enquanto, Gabrielli e a família conseguem sobreviver com bastante aperto com o salário do marido e com o pouco que ela lucra nas redes sociais.
Segundo dados obtidos com o governo estadual, os atendimentos em saúde mental feitos na Atenção Primária (aqueles ofertados em Unidades Básicas de Saúde) se mantiveram disponíveis no município. Antes da enchente, os atendimentos ultrapassaram 1.500 por mês, com meses chegando a 2.000 atendimentos. Neste ano, seguem registradas em torno de 1.500 consultas mensais.
Já as informações fornecidas pelo município em relação aos atendimentos nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) em Canoas mostram um aumento. Em março de 2024, por exemplo, foram 7,6 mil atendimentos. Já em março deste ano, o número chegou perto de dobrar: 13.941.
O Terra solicitou esclarecimentos à prefeitura de Canoas com relação à disponibilidade de neurologistas no serviço público de Saúde, mas não obteve retorno até a publicação desta matéria. O espaço segue aberto.
Um ano das enchentes
Canoas foi a cidade do Rio Grande do Sul que, em números absolutos, mais teve pessoas atingidas: 157.829. De acordo com os números oficiais atualizados, foram registradas 31 mortes na cidade. Os bairros Harmonia e Mathias Velho, por onde andei, ficaram praticamente submersos. Todo mundo tem uma história para contar. Ninguém esperava. Ainda há entulhos nas ruas mesmo 365 dias depois da tragédia histórica. Casas foram abandonadas, e o rastro destruição continua visível.
Foram 418 dos 497 municípios do Rio Grande do Sul que declararam estado de calamidade ou de emergência em maio passado por causa das enchentes. Depois de Canoas, entre as cidades mais afetadas, vem Porto Alegre (125.274 atingidos), São Leopoldo (90.371), Rio Grande (70.930), Pelotas (49.795), Eldorado do Sul (32.509), Guaíba (31.175), Novo Hamburgo (29.161), Alvorada (25.825), Esteio (19.970) e Igrejinha (16.683).
Já considerando a porcentagem da população atingida, as cidades mais afetadas no Rio Grande do Sul pela enchente foram Eldorado do Sul (82,2% da população), Muçum (79,1%), Roca Sales (54,55), Arambaré (51,9%), Travesseiro (51%), Igrejinha (50,9%), Colinas (49,6%), Arroio do Meio (48,2%), Marques de Souza (45,5%), Canoas (45,4%), São Sebastião do Caí (41,7%) e São Leopoldo (41,6%).
No total, em todo o estado, 970.788 pessoas foram atingidas pela enchente. Quantidade superior à de estados brasileiros como o Acre (880.631), Amapá (802.837) e Roraima (716.793), que possuem menos de 1 milhão de habitantes cada, de acordo com o Censo de 2022. É como se a enchente tivesse devastado todo um Estado.
Para que não se repita
Em pedido feito há mais de dez dias, o Terra solicitou detalhes a Canoas sobre os fatores que potencializaram a enchente na cidade, sobre os alertas emitidos aos moradores, assim como quais estão sendo os planejamentos adotados pela cidade para que a situação não se repita. Até a publicação desta matéria, a prefeitura não forneceu essas respostas. O espaço segue aberto.