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Manchas no mar de Fortaleza: o que pode estar sujando a água e de quem é a responsabilidade?

Manchas escuras voltaram a tomar parte das águas da orla de Fortaleza. Vídeos capturados no domingo (29) circularam nas redes sociais e mostram a foz do Riacho Maceió e o trecho ao lado do Espigão do Náutico com uma água preta saída das galerias pluviais que deságuam nas regiões, após a chuva ao longo da noite anterior e da madrugada. O problema reacende o debate sobre quem é o responsável e o que pode ser feito para resolvê-lo.
As impurezas já atingiram outros pontos da orla, em anos anteriores, e foi motivo de disputa política entre a Prefeitura de Fortaleza e o Governo do Ceará nos últimos anos. Agora, com as gestões alinhadas politicamente, Evandro Leitão (PT) aposta em “dar as mãos” em busca de uma solução. Nos casos do último fim de semana, o Município afirma que “não necessariamente” se trata de esgoto e que será feita análise da qualidade da água das galerias pluviais que escoam para as regiões até esta sexta-feira (4).
“Eu tomei conhecimento dessa situação ontem (domingo) e hoje de manhã já entrei em contato com a Cagece para que a gente possa fazer um estudo, uma avaliação dos imóveis que estão localizados naquela região da Beira Mar, para que, o quanto antes, a gente possa estar solucionando”, afirmou o prefeito, em entrevista concedida ao Diário do Nordeste, na última segunda-feira (30).
O gestor municipal afirmou que a população “tem toda a razão de reclamar” e os executivos municipal e estadual estão “de mãos dadas” para solucionar o problema. “Se a situação for da Prefeitura de Fortaleza, eu vou colocar uma força-tarefa para que possamos resolver essas manchas o quanto antes, porque a população não pode ser prejudicada na sua saúde”, afirmou.
De acordo com a Agência de Fiscalização de Fortaleza (Agefis), a água escura registrada no mar, na altura do Parque Arquiteto Otacílio Teixeira Neto — o Parque Bisão — e próxima ao Espigão do Náutico está relacionada “ao arraste de sedimentos, areia, entre outros resíduos levados pelas galerias pluviais em períodos de chuvas intensas”. Segundo a Pasta, trata-se de material acumulado nas ruas da Cidade que é carregado pela força da água até os pontos de deságue na praia, “não necessariamente se configurando como lançamento de esgoto”.
No último boletim de balneabilidade produzido pela Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace), os dois pontos estavam impróprios para banho, oferecendo riscos à saúde. O resultado da análise da água refere-se à semana de 23 a 29 de junho, e foi coletada antes da chuva do último fim de semana, que teve máxima de 64 mm registrada pelo posto pluviométrico do Pici.
Na plataforma da Semace, constam 23 boletins emitidos em 2025. O trecho do Mucuripe na altura da foz do Maceió foi considerado impróprio para o banho em todos eles. Já a água do Meireles, próximo ao Espigão do Náutico, esteve impróprio em outros quatro momentos: de 13 a 19 de janeiro e nas três semanas entre 5 e 25 de maio.
O doutor em Engenharia Sanitária Michael Barbosa Viana, professor e pesquisador do Instituto de Ciências do Mar (Labomar) da Universidade Federal do Ceará (UFC), explica que a chuva também leva para o mar impurezas existentes no sistema de drenagem, oriundas de esgoto clandestino, além dos resíduos acumulados no continuante, durante o período seco.
“Quando vem essa chuva torrencial, essa chuva mais forte, todo esse material é carreado para os rios e para os oceanos. Há uma grande carga desses poluentes, então fica muito evidente essa chegada dessas impurezas, que dão aquela coloração escura ao oceano, formando aquela pluma bastante visível nas praias”, explica.
Essa carga de poluentes pode chegar ao mar por duas vias, conforme o professor:
- Pelas galerias pluviais que alcançam diretamente as praias
- Por meio de rios e riachos de Fortaleza, que recebem água do escoamento superficial das galerias de drenagem
“Também tem outra possibilidade que é muito frequente. Quando o rio está com fluxo muito baixo, em períodos sem chuvas ou chovendo muito pouco, as impurezas ficam se acumulando no fundo, no leito do riacho. Quando temos uma chuva muito forte, ela também leva esses sedimentos de fundo — cheios de impurezas, de matéria orgânica morta —, que são suspensos para a coluna d’água e chegam ao oceano”, complementa.
No caso da mancha escura no mar do Mucuripe, na altura do Parque Bisão, o professor explica que o Riacho Maceió recebe água do Riacho Papicu, que vem da lagoa de mesmo nome. “Ao longo do percurso deste rio tem muito despejo de esgoto bruto”, diz. O Labomar tem pesquisas realizadas no Maceió e apresentou informações da literatura em audiências do Ministério Público do Ceará (MPCE).
O órgão instaurou pelo menos dois inquéritos civis para investigar a contaminação de pontos da orla de Fortaleza por esgoto. Um deles é de um de agosto de 2023 e refere-se justamente ao Riacho Maceió; o outro, de março de 2024, aborda a região da Praia de Iracema apelidada de “Praia dos Crush”. Ambos são conduzidos pela promotora de justiça Ann Celly Sampaio Cavalcante.

Crime ambiental
Em entrevista ao Diário do Nordeste, a promotora explicou que há diversas ocupações irregulares ao longo do Maceió que despejam resíduos no riacho, além de pontos comerciais. Em muitos casos, de acordo com ela, a ligação do esgoto não é feita pela população por falta de recursos financeiros; em outros, porque a rede de esgoto não passa perto da construção.
“A gente já vem lutando sobre isso há algum tempo. É algo muito triste, vem de gestões, não é de agora que o Riacho Maceió transborda e joga lixo no mar. (…) Estamos conversando há mais de dois anos e tentando fazer com que eles (os órgãos competentes) façam sua parte”, afirma a promotora. Ela destaca que, além de colocar a saúde da população em risco, assim como a fauna e a flora marítimas, o despejo irregular é crime ambiental.
A Lei nº 9.605/98, conhecida como Lei de Crimes Ambientais, prevê multa e reclusão de um a quatro anos a quem “causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora”. Em caso de crime culposo, a sanção é de multa e detenção de seis meses a um ano. Mas a pena pode chegar a cinco anos se o crime:
I- Tornar uma área, urbana ou rural, imprópria para a ocupação humana;
II – Causar poluição atmosférica que provoque a retirada, ainda que momentânea, dos habitantes das áreas afetadas, ou que cause danos diretos à saúde da população;
III – Causar poluição hídrica que torne necessária a interrupção do abastecimento público de água de uma comunidade;
IV – Dificultar ou impedir o uso público das praias;
V – Ocorrer por lançamento de resíduos sólidos, líquidos ou gasosos, ou detritos, óleos ou substâncias oleosas, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou regulamentos.
O texto prevê as mesmas penas para “quem deixar de adotar, quando assim o exigir a autoridade competente, medidas de precaução em caso de risco de dano ambiental grave ou irreversível”.

Além dessa normativa, a Lei Complementar nº 270/2019, legislação municipal de Fortaleza que institui o Código da Cidade, considera que “lançar condutos de águas servidas ou efluentes, bem como detritos de qualquer natureza, nas praias, rios, riachos e lagoas” é uma infração gravíssima. A penalidade, segundo o artigo 931, é de multa simples, reparação, reposição ou reconstituição.
Segundo informações da Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece), as irregularidades identificadas durante fiscalizações a imóveis de Fortaleza dividem-se em dois principais tipos:
- Ligações de esgoto na rede de drenagem, que resultam na poluição de corpos hídricos, como ocorre na faixa litorânea da capital;
- Ligações indevidas de águas pluviais (como calhas e ralos) na rede de esgoto, sobrecarregando as tubulações e as estações de tratamento.
O lançamento da água de drenagem no mar não é proibida “de forma taxativa” pela legislação, mas exige requisitos técnicos e ambientais para evitar impactos negativos, segundo a arquiteta Marília Noleto, conselheira estadual do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Ceará (CAU/CE). Ela pontua que, em Fortaleza, isso não é feito. “Do jeito que desce pela cidade, chega na praia”, afirma.
Mesmo que todas as ligações clandestinas de esgoto fossem removidas, a arquiteta afirma que a água da rede pluvial continuaria imprópria para lançamento na praia. “A simples água que a chuva lava da cidade, das calçadas, das vias, traz uma quantidade significativa de poluentes”, afirma.
O poder público não pode permitir que sua água pluvial desemboque diretamente da praia. Ela teria que passar por algum tipo de tratamento. Não precisa ser como o da rede de esgoto, ela tem uma concentração de poluentes menor do que o do esgoto propriamente dito. Mas tem que ter tratamento.
De quem é a responsabilidade?
O socioambientalista André Comaru, idealizador do Coletivo Nossa Iracema, tem acompanhado o inquérito civil sobre a Praia de Iracema e lamenta a falta de informações e de respostas concretas por parte dos órgãos responsáveis. “Quase depois de dois anos, temos uma chuva como a de ontem (domingo) e recorrentemente vemos os mesmos problemas”, afirma.

Ele explica que, para a resolução de um problema histórico como esse, é necessário um plano executivo em conjunto, que reúna atores como Agefis, a Secretaria Municipal do Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma), Secretaria Municipal da Infraestrutura (Seinf), Cagece e Ambiental Ceará — parceira da Companhia na operação do esgoto.
Ele explica que a Agefis, órgão com poder de polícia, deve investigar e autuar os locais ligados clandestinamente ou que não estão ligados à rede de esgoto, enquanto a Ambiental Ceará precisa retirar a ligação clandestina e conectar o endereço à rede. “(Mas) a Agefis autua e a Ambiental alega que vai fazer o ligamento e não deixam”, afirma ele, sugerindo que as duas atuem juntas nessas operações. Já a Seinf faz a manutenção da rede de água pluvial.
A responsabilidade por esse problema, de certa forma, é compartilhada, porque o município é responsável pelo sistema de drenagem, e aí temos órgãos como a Seuma e a Seinf, da Prefeitura de Fortaleza. A outra parte é a Cagece, que é responsável pelo saneamento do município, mais especificamente água e esgoto, e tem uma Parceria Público-Privada (PPP) com a Ambiental Ceará, que está responsável, basicamente, por todo o sistema de coleta e tratamento do esgoto. Outra parte interessada é a Agefis, que fiscaliza as ligações clandestinas ou essas tubulações de esgoto que estão ligadas à rede de drenagem.
Além desses órgãos, Viana destaca o papel da Semace, nos casos em que ela tem atribuição, para autuar os empreendimentos que estão jogando o esgoto na rede de drenagem.
“Sei que isso encarece bastante para o órgão, mas a Semace poderia ampliar o monitoramento dos rios, riachos e praias de Fortaleza. Sabemos que tem certa frequência, é basicamente semanal, mas quem sabe, poderia ser diário, especialmente nos períodos de chuva, para ver a qualidade dos rios e riachos, para ver como está a balneabilidade das praias”, sugere o pesquisador.
