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CIDADES

‘Muro’ da preservação na Amazônia Legal, quilombo sofre com falta d’água e calor extremo: “Muitos vão embora”

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Há mais de 200 anos, o Quilombo Morro São João, em Santa Rosa, na região sudoeste do Tocantins, existe como um local de resistência dos tataranetos, bisnetos, netos e filhos de escravos que por ali passaram. A comunidade é um símbolo da luta contra a escravidão no Brasil e, nos dias atuais, age na preservação da cultura deixada pelos seus antepassados.

Josilene de Sena, de 55 anos, é professora e moradora do Quilombo Morro São João
Josilene de Sena, de 55 anos, é professora e moradora do Quilombo Morro São João

Foto: Arquivo pessoal

  • Esta reportagem faz parte da série Vozes da Amazônia, que retrata a realidade de comunidades brasileiras (seringueiros, indígenas, barqueiros, parteiras e médicos) que vivem e dependem dos recursos naturais da maior floresta tropical do mundo. 

Localizado a 130 km de Palmas, capital do Tocantins, o Morro São João foi certificado pela Fundação Cultural Palmares (FCP) como quilombo remanescente em 2006. Josilene de Sena Nunes, de 55 anos, é uma das quilombolas que nasceu dentro da comunidade e permanece lá até os dias de hoje. Seu bisavô era Victor de Sena Ferreira, proprietário de diversas terras do quilombo, que hoje abriga cerca de 40 famílias.

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Ela conta ao Terra que a história que sempre ouviu de seus pais era de que um padre chamado Bernardino se casou com uma polonesa. No entanto, ele gerou herdeiros negros, frutos de uma relação com sua escrava, Pelonha, o que, anos depois, deu origem ao quilombo.

“Nessa época, os padres podiam casar. Mesmo casado, ele ia em Porto Seguro (Bahia) e se relacionava com mulheres negras, muitas vezes abusava delas. Com uma dessas mulheres, ele teve Victor de Sena Ferreira, que herdou muitas terras e acabou criando essa comunidade. Ele teve nove filhos com uma mulher chamada Margarida Barros”, diz.

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Victor acabou deixando muitas terras para os herdeiros. “Essa casa que eu moro é do meu avô, que era filho do Victor. Eu não quis mudar nem quis fazer outra, só restaurei. Algumas terras dessa comunidade pertencem ao meu pai, porque ele acabou herdando do meu avô. Outras ficaram para os netos dos outros filhos de Victor e Margarida”, acrescenta.

O desenho do quilombo ainda é o mesmo: as casas são distribuídas de forma circular. Um morro mais distante era um dos locais usados para os escravos se esconderem. Nos fundos da casa de Josi, ainda há vestígios de onde era a senzala. O quilombo guarda muita história de dor e de luta pela liberdade, mas mantém ativa a cultura dos ancestrais por gerações.

Entre as festividades tradicionais dos quilombolas está a festa das “Santas Almas Benditas”, que ocorre todo dia 2 de novembro (Dia de Finados), que mescla elementos do catolicismo com tradições africanas. “As pessoas formam um cortejo e fazem reverências. Depois, seguem para o cemitério enquanto cantam e dançam”, explica. O gesto é uma maneira de mostrar aos mortos que os entes queridos sentem sua falta.

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Na Semana Santa, há um dia dedicado para uma tradição no Sábado de Aleluia. “Os filhos dos escravos saíam nas portas dos senhores pedindo doces porque eles não tinham acesso a isso e não podiam comer. Então, no Sábado de Aleluia, eles saíam cantando e pedindo doce, até que os senhores davam os doces para eles”, conta.

Das memórias que guarda da infância, Josi cita a falta de condições financeiras da família, mas também muita riqueza e aprendizado. A realidade daqueles que moram hoje no quilombo é totalmente diferente daquela em que a mulher cresceu.

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“Não tínhamos energia elétrica, usávamos luz de candeia. A gente trabalhava na roça, apanhava lenha. Mas era uma infância muito rica, que hoje tento passar para os meus filhos. Eles não conhecem o engenho, porque aqui já não tem mais, mas muita coisa ficou. Agora, também tem ônibus que transporta eles para outra cidade para poder ir pra escola. Mas a gente vive muito de quilombo ainda” — Josilene de Sena Nunes

Josi é professora de uma escola dentro do quilombo. Além dos alunos estudarem matérias de ensino regular, eles também aprendem sobre a cultura quilombola. “A gente ensina para as nossas crianças sobre a cultura quilombola, mostra como era antigamente. Têm crianças que vêm de outras localidades para estudar aqui que também não conhecem essa realidade que a gente viveu. A gente mostra, faz exposição para mostrar como era no quilombo”, destaca.

Para o Dia da Consciência Negra, no próximo dia 20 de novembro, o Quilombo Morro São João já tem programação. O dia será de festa com um evento para emitir carteiras de quilombolas, além de almoço, jogos e apresentações celebrando a cultura negra. “Temos que mostrar nossas raízes, né? É tudo muito bonito, muito gratificante.

Quilombolas resgatam símbolos da cultura africana
Quilombolas resgatam símbolos da cultura africana

Foto: Reprodução/Comunidade Quilombola Morro São João/Facebook

“Muitos vão embora, porque precisam estudar ou porque falta recurso. Eu fui embora estudar e depois voltei, mas a maioria acaba não voltando. Mas aqui, em época de férias, parece uma cidade, é muito bom, parece uma volta no tempo de tanta gente visitando”, comenta emocionada.

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A carteirinha se refere à Certidão de Autodefinição de Comunidade Remanescente de Quilombo, emitida pela FCP, que serve como um documento oficial para comprovar a identidade quilombola. Com isso, é possível garantir acesso a políticas públicas diferenciadas para essa população.

Apesar da rotina do quilombo seguir como a de uma comunidade no centro urbano, os moradores enfrentam problemas de falta de água. “Temos energia, internet, a escola tem tudo, é super organizada, mas além de faltar água aqui, ela não é tratada e é de má qualidade. Às vezes, a gente passa uns três, quatro dias por semana com dificuldade de água”, desabafa.

Josilene também percebe que as mudanças climáticas tornam a vida no quilombo um pouco mais difícil. “Muitas pessoas do quilombo estavam vendendo suas terras para grandes agricultores e pecuaristas. Aqui perto, por exemplo, tem floresta, mas você anda um pouco e já vê tudo desmatado. Tem plantio de soja, criação de gado, plantação de arroz, e assim vai”, ressalta.

Em algumas épocas, a região enfrenta dias de muita chuva com ventania ou um calor extremo. “Quando tem queimadas, porque colocam muito fogo aqui perto, é muito quente porque não têm árvores”, completa. Mesmo em meio a essas dificuldades, Josi pontua que a comunidade tem uma ótima relação com a natureza.

“Nós, aqui da comunidade, preservamos muito a natureza. Temos plantações de várias plantas e árvores frutíferas, como caju e manga. Daqui da minha casa, ouço os periquitos e araras cantando sempre. Temos um rio aqui próximo, animais soltos na comunidade e muitas pracinhas com árvores. É tudo muito bom”, afirma.

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Comunidade Quilombola Morro São João mantém tradições há gerações
Comunidade Quilombola Morro São João mantém tradições há gerações

Foto: Reprodução/Comunidade Quilombola Morro São João/Facebook

Quilombos atuam na preservação da floresta

A fala de Josilene não é para menos. De acordo com o Instituto Socioambiental (ISA) e a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), os quilombos atuam como barreiras contra o avanço do desmatamento e das queimadas na Amazônia Legal. Desde 1985 até 2022, os territórios localizados dentro dessa região perderam apenas 4,7% de sua cobertura florestal original.

De acordo com o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil tem mais de 1 milhão de pessoas que se identificam como quilombolas, o que corresponde a 0,65% da população total do País. Eles estão concentrados na maior parte dos Estados brasileiros, com exceção do Acre e Roraima, e em quase 1.700 municípios têm quilombolas.

Destes, quase 427 mil estão nos Estados que compõem a Amazônia Legal, o que representa 32,1% dos quilombolas brasileiros. A maioria dos quilombolas da Amazônia Legal está nos Estados do Maranhão e do Pará (90%). Levando em consideração o Censo 2022 do IBGE, a divisão dos territórios quilombolas por bioma fica assim: a Amazônia conta com 181 territórios quilombolas, a Mata Atlântica com 136, a Caatinga com 94, o Cerrado com 63 e o Pampa com 20 quilombos.

A Flourish chart

Além disso, a divisão por Estados da Amazônia Legal aponta que o Maranhão tem 248.661 quilombolas, enquanto o Pará tem 135.03. O Tocantins conta com 12.881 quilombolas, o Amapá com 12.524 e Mato Grosso com 11.719 quilombolas. Rondônia tem 2.926 quilombolas, enquanto o Amazonas traz 2.705. Os Estados do Acre e Roraima não apresentam registros de quilombolas.

A Flourish map

Apesar do último censo do IBGE apontar a existência de 494 territórios quilombolas no Brasil com limites oficialmente reconhecidos, um estudo publicado pelo ISA identificou 632 territórios quilombolas em 2025. Essas áreas somam mais de 3,6 milhões de hectares.

A pesquisa mostra que a maior concentração no número de territórios está nos Estados do Maranhão (64%) e do Pará (25%). Em extensão, o Pará vem em primeiro lugar, com 1,4 milhão de hectares, ou 40% do total; o Amazonas fica em segundo lugar, com 753,4 mil hectares ou 20% do total; e o Tocantins, em terceiro lugar, com 607,9 mil hectares, 17% do total. Além disso, quase metade dos quilombos mapeados não têm delimitação territorial e apenas 160 territórios estão titulados integralmente.

Segundo o ISA, os resultados mostram que, à medida que os quilombos recebem reconhecimento territorial, o nível de proteção das florestas aumenta. Territórios com titulação preservam 91% de sua cobertura original, enquanto para os não titulados o índice cai para 76%.

Para a COP30, em Belém (PA), um dos objetivos da Conaq é defender que a titulação de territórios quilombolas seja incluída na NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada) do Brasil e no Plano Clima Nacional.

“O País já enviou sua NDC, mas ainda pode acrescentar anexos metodológicos a qualquer momento, detalhando as medidas para alcançar a redução de 59% a 67% até 2035. É nessa brecha que as organizações quilombolas pretendem atuar. A Conaq sugere 43 propostas que poderiam estar na NDC brasileira e no Plano Clima. Entre elas: acelerar o ordenamento territorial e fundiário; acelerar o processo de transição energética justa, com investimento em descarbonização da matriz energética e incentivos para o sistema agrícola quilombola e tradicional; elaborar e revisar planos de adaptação às mudanças climáticas”, destaca a organização.

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