CIDADES
‘Vieram e me cercaram’: oceanógrafo conta como foi ‘escolhido’ por golfinhos e iniciou projeto que virou referência

“Os golfinhos vieram, me cercaram, e tudo isso foi no dia do meu aniversário de 27 anos. E daí eu senti que esse era o meu presente de aniversário: construir um projeto para pesquisar os golfinhos”. Esta lembrança, narrada pelo oceanógrafo José Martins da Silva Júnior, 62 anos, parece o roteiro de um filme, mas foi o evento real que selou o destino do gaúcho em Fernando de Noronha.
O encontro, que ocorreu na década de 1990, foi o marco zero do Projeto Golfinho Rotador, que neste ano celebra 35 anos de uma atuação que se tornou referência nacional em conservação marinha, educação ambiental e desenvolvimento comunitário.
Natural do interior do Rio Grande do Sul, José Martins se formou em oceanografia na gaúcha Rio Grande. O convite para ir a Fernando de Noronha chegou quando ele ainda estava na faculdade, em julho de 1988, com o objetivo de trabalhar na criação do Parque Nacional Marinho. Em janeiro de 1989, com o parque já criado, se mudou para a ilha.
“Fui trabalhar no Atol das Rocas. A ideia era implementar a reserva biológica do Atol das Rocas, a partir de Fernando de Noronha”, relembra Martins ao Terra. Após um ano neste trabalho, mudanças no governo federal interromperam o convênio, mas ele já havia se estabelecido na ilha. Foi então convidado pelo chefe do parque para continuar trabalhando, agora na área de uso público e pesquisa.
O destino concretizou-se em uma reunião para o plano de manejo do Parque Nacional Marinho. “Um desses programas [do plano] era pesquisar os golfinhos. E eu estava nessa reunião. Tinha escrito um projeto uma vez um tempo atrás para estudar os golfinhos e me foi colocado se eu não queria reescrever e encaminhar esse projeto.”
Na mesma data, ele precisou ir à Baía dos Golfinhos para recolocar uma boia de sinalização. “Ao entrar, os golfinhos vieram e me cercaram. Eu até botei a boia no lugar, mas assim, estive com muitos golfinhos durante bastante tempo”. Para ele, aquele foi um sinal, e a partir daí ele viria a colocar em prática o antigo plano.
Pilares de atuação
O Projeto Golfinho Rotador se estrutura em programas que vão da pesquisa ao envolvimento direto com a população ilhéu. O golfinho-rotador é uma espécie oceânica comum em águas tropicais. Reconhecível pelo seu bico longo e fino e pela coloração mais escura no dorso, seu nome popular vem de seus saltos, onde executam rotações no ar antes de mergulhar. Dentre as ações que o projeto realiza para preservá-lo, estão:
Programa de Pesquisa: O trabalho busca responder perguntas fundamentais sobre os golfinhos-rotadores (Stenella longirostris): “Onde estão os golfinhos? O que eles estão fazendo? Quantos golfinhos têm? Quais golfinhos estão andando juntos?”.
Monitoramento: Feito de dois pontos fixos no alto da ilha, o Forte Nossa Senhora dos Remédios e o Mirante da Baía dos Golfinhos.
Identificação: Os pesquisadores realizam saídas de barco para fotografar os animais e identificá-los individualmente por marcas naturais nas nadadeiras e corpos.
Genética: A população de golfinhos de Noronha é a terceira mais antiga do mundo a ser monitorada geneticamente, com cerca de 200 animais estudados.
Saúde: São realizadas autópsias de animais mortos (menos de um por ano) e análise de fezes, que inclusive permitiram a descoberta da presença de microplásticos no ambiente.
Turismo, comunicação e conscientização ambiental: O projeto também estuda a interação dos golfinhos com as embarcações de turismo; tem trabalhos com foco em sensibilizar moradores e visitantes; oficinas de conscientização nas escolas; e palestras aos turistas.
Programa de Envolvimento Comunitário: O projeto é o maior apoiador de atividades esportivas e culturais da ilha; patrocina o circuito local de surfe e uma escola do mar que oferece aulas gratuitas de surfe, vela e canoa para as crianças; também apoia o grupo cultural local; e atua assessorando meios de hospedagem, bares e restaurantes na adoção de práticas mais sustentáveis; além disso, oferece cursos de capacitação para a comunidade local, como inglês e condução de visitantes.
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A conservação que caminha com a comunidade
Para José Martins, o grande aprendizado do movimento ambientalista moderno é a necessidade de trabalhar em conjunto com a população local. “No início, houve os desafios, mas hoje em dia a comunidade de Noronha já entende o impacto da atividade humana e consegue perceber que um turismo feito da maneira certa, respeitando a legislação e o meio-ambiente, garante o seu modo de vida, o seu sustento econômico e dá uma sustentabilidade a longo prazo dessa atividade”, destaca.
Esse trabalho de base, construído ao longo de décadas, gerou um diferencial para o projeto. “Estamos juntos com a população. A Marina Silva tem uma frase que eu gosto muito: ‘É fácil preservar o meio ambiente dos outros, difícil é preservar o meio ambiente da gente’. E isso é verdade”.
O resultado desse esforço, segundo ele, é visto já dentro do seu quadro de colaboradores. “Hoje, a maior parte dos 15 funcionários do projeto é egressa dos nossos programas de educação ambiental. E não só isso, além daqueles que foram nossos alunos, temos também filhos de alunos nossos. A gente já tá na nossa terceira geração de educação ambiental.”
O trabalho de preservar e sensibilizar as pessoas
Uma influência marcante na filosofia do projeto foi a amizade com o mergulhador francês Jacques Mayol, o primeiro homem a atingir 100 metros de profundidade em apneia. Foi ele quem introduziu um princípio fundamental ao trabalho: “Ele me ensinou uma técnica que chama mergulho passivo, onde a gente em contato com os golfinhos é o menos ativo possível, não nada em direção a eles, fica mais observando do que interagindo ativamente com eles.”
Essa postura de respeito, herdada de Mayol, mostrou-se crucial diante do crescimento exponencial do turismo. O próprio José Martins contextualiza: “Nos últimos 10 anos, o número de visitantes de Noronha saltou de 76.000 para mais de 130.000”. Nesse cenário, a proibição do mergulho com os golfinhos, em vigor desde 1999, mostrou-se uma medida de preservação essencial. “Se não tivesse sido proibido e tivesse permitido o mergulho, provavelmente os golfinhos não estariam mais aqui”, destaca.
Além do exemplo na conservação, o trabalho do Projeto Golfinho Rotador tem conquistado reconhecimentos importantes. Em 2025, a iniciativa se tornou a primeira ONG da América Latina a receber o Selo Ouro da Green Destinations Latinoamérica, uma certificação internacional que atesta suas boas práticas de sustentabilidade interna e externa.
E, passados 35 anos, ele ainda mantém a mesma paixão do início. “O que me encanta é poder achar que a gente tá fazendo algo para preservar esse comportamento dos golfinhos de vir a Fernando de Noronha, de estar aqui. É também usar os golfinhos como uma ferramenta para sensibilizar os visitantes, os turistas, e as pessoas que estão em casa, para pensar no oceano como um lugar mais importante pro planeta, perceber a importância da conservação da natureza. E isso tudo sempre colocando em primeiro lugar o bem estar desses animais.”
