ENTRETENIMENTO
O autêntico legado de Gloria Maria
Como profissional do jornalismo e da televisão brasileira, o legado construído e deixado por Gloria Maria é imensurável e eterno. Só o fato de que ela foi a primeira repórter a entrar ao vivo em uma cobertura jornalística já teria lhe garantido esse lugar. Imagina as inúmeras e icônicas entrevistas, sempre cheias de conteúdo e respeito à grandeza do entrevistado então? Nossa, tudo que Gloria fez foi dar aula de como qualidade está, sim, atrelada ao carisma e ao apelo popular, pois ela cativava o espectador das mais variadas camadas sociais.
Ou seja, era popular. Tipo Elis Regina, tipo Caetano Veloso. Tipo Jorge Amado, tipo Pelé. Só que em uma área tão perigosa e, por isso mesmo, tão necessária quanto o jornalismo, que esbarra fácil no lugar de “gatilho” do desinteresse do público. Justamente porque no Brasil anterior a Gloria Maria o modo de passar informação e formar opinião era chato, com certa dose de pedantismo e pouca identificação com quem estava recebendo esse produto. Gloria reposicionou isso, através do seu lugar de repórter, nos dizendo sem dizer explicitamente que tudo pode ser interessante, tudo pode ser importante, tudo pode ser útil. Mas a particularidade que precisa ser destacada, sobretudo em tempos de discreta discussão sobre se é ou não possível separar a obra da pessoa que a produz, é que Gloria Maria imprimiu seu caráter e sua personalidade no que fazia. Como ela conseguiu essa mágica? Sendo autêntica.
Ao rejeitar rótulos e lançar mão da liberdade de ser e fazer do seu jeito, implicitamente nos informava que era senhora de si, como poucas conseguiram ser. Mesmo hoje em dia, não se vê muito essa atitude entre as mulheres. O fato dela não querer revelar a idade, por exemplo, jamais soou como algum incômodo causado pelo etarismo que nos pauta. Ao contrário, sempre me pareceu um artifício para burlar todo e qualquer desvio do foco de seu trabalho de informar e despertar nossa vontade de ir além do que aparentemente a televisão permite.
É fascinante ver como Gloria Maria conseguiu se livrar do vício de transformar tudo em algo sobre si mesma, especialmente nesses tempos de narcisismo naturalizado. Nem a questão racial a fez cair na armadilha dos rótulos. Ela não foi a jornalista negra, ela foi a jornalista que quando necessário evocava a ferida do racismo e seus efeitos castradores na vida e ascensão de pessoas negras mas, que não permitia de modo algum que a reduzissem a isso ou que a transformassem em um clichê. Talvez até por isso ela tenha sido uma das figuras femininas mais úteis à desconstrução do estigma “mulher negra”, muito em evidência atualmente e que confina pessoas negras do gênero e sexo feminino em um espaço mais limitante e desumanizador do que se pode enxergar.
Gloria segue em nossos corações e em nossa memória, na memória do Brasil, como uma mulher que, como muitas de sua geração, não aceitou estacionar no lugar previamente pautado pelas mentalidades tacanhas e supremacistas. Ela se permitiu e nos ensinou da maneira excepcionalmente elegante a pautar e não se deixar ser pautada por nada e nem ninguém. A lição mais importante que Glória Maria me ensinou foi que ser mulher e negra é uma condição e não uma sentença ou condenação. E entendendo isso, assim como ela, eu posso dizer e viver quem eu sou e não o que minha condição social insistentemente me impõe.