Esperança do Brasil na marcha atlética fritava pastel e vendia caldo de cana no Rio de Janeiro
Publicado em
19 de julho de 2024
por
Terra
A Escola Municipal Ramiz Galvão fica longe do Rio de Janeiro das ‘Helenas’ e do calçadão de Copacabana, velhos conhecidos do espectador da televisão aberta. Da praia de Ipanema para lá, na Zona Oeste da capital fluminense, o caminho é longo: cerca de uma hora. Isso de carro. De condução, a depender de onde esteja, chegar no bairro de Realengo requer muita baldeação entre os ônibus e vans.
Essa reportagem faz parte da série Elas no Pódio, que conta histórias de seis mulheres (Rafaela Silva, Bia Ferreira, Ana Marcela Cunha, Rebeca Andrade, Viviane Lyra e Rayssa Leal) que são inspiração e referências nos seus respectivos esportes, além de representarem o Brasil nos Jogos Olímpicos de Paris.
Não importa o que era necessário fazer para chegar, a professora de educação física Carla Reis batia ponto toda semana. No início dos anos 2000, a educadora era responsável por um projeto de atletismo vinculado ao município e, além de dar aulas na grade curricular comum, também ficava de olho e treinava crianças que pareciam ter algum potencial no esporte.
Foi justamente em um dia comum de treinos com os alunos da 6ª série do Ensino Fundamental que Carla observou melhor uma menina. Sem quadra, os pequenos treinavam em um campo de terra batida, e a professora improvisava os exercícios ali mesmo. Entre uma coordenada e outra, ela se surpreendeu quando viu uma aluna correr: “Eu me lembro exatamente da cena, a primeira vez que a vi marchando. Ela nasceu marchadora”.
Quase duas décadas depois, a pequena de 11 anos é hoje uma atleta olímpica de prestígio e se prepara para a Olimpíada de Paris. A trajetória de Viviane Lyra é marcada por muitos ‘nãos’, mas também por uma disciplina e uma vontade de fazer acontecer que abre as portas mesmo que na marra, como uma boa carioca.
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De lá para cá, ela teve que fazer jornada dupla no esporte e em uma barraquinha de pastel, descobriu uma hepatite às vésperas de um Mundial de Atletismo e até chegou a parar de competir na marcha atlética por um tempo. Além da determinação, o que não a deixou em todos os momentos difíceis foi sua grande rede de apoio, que vai desde a irmã mais velha, sua primeira parceira no esporte, até o marido, que também é seu treinador.
Na conversa com o Terra, Viviane Lyra faz questão de citar todos eles com lágrimas nos olhos de quem sabe o que viveu e ao que renunciou para chegar até o outro lado do oceano, na capital francesa.
‘Braba’ da irmã e número 1 da professora
Dizem que o irmão do meio é o que tem menos privilégios. Geralmente, ele é visto como menos responsável que o mais velho e menos mimado que o mais novo. Ainda há quem defenda que eles quase passam despercebidos. Na família Lyra, isso não é verdade. Viviane é a segunda de três filhos do casal Rosilene e José Loureiro Lyra, o Zezinho. Com cinco anos de diferença, ela se tornou a “boneca” da irmã, Luana, assim que nasceu.
Em todas as tentativas de contato, Luana Lyra se mostrou aberta a falar da irmã atleta e muito emocionada ao relembrar a trajetória. Com a voz embargada, ela contou o quão ansiosa e nervosa estava para o nosso bate-papo. “É um misto de sentimentos, porque foi muita luta”, explica, ao pedir desculpas pela emoção.
A ‘luta’ citada por Luana foi batalhada desde muito cedo por ela, a primogênita da família. Assim como a irmã, ela virou aposta do atletismo aos 11 anos, também descoberta pela professora Carla Reis. Entre as idas e vindas ao Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças (CFAP), em Sulacap, bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro, Luana até ficou um tempo competindo na marcha atlética, mas precisou deixar o esporte para levar dinheiro para casa.
“Comecei a trabalhar com 13 anos em lan house, vendendo assinatura de revistas. Bati o pé com o nosso pai, que ainda era vivo, e falei: ‘Eu quero trabalhar’. Por isso, deixei o esporte um pouco de lado, mas sempre treinava, ia na vila correr. Só não mais com a responsabilidade de competir”, relembra.
Luana viu a irmã despertar o desejo de treinar marcha atlética aos 11 anos, assim como ela. A professora que apostou nas meninas da família Lyra considera até que elas tiveram uma ajudinha da ciência.
“É um talento genético (risos). Eu sempre brinquei com elas, eu dizia: ‘Marchador nasce marchador’. Você vê a criança andando e ela já tem um jeito diferente de caminhar, né?”, diz Carla Reis. Na modalidade, o atleta precisa caminhar de maneira que sempre, pelo menos um dos pés, esteja em contato com o solo.
O difícil era Viviane ir aos treinos. Isso porque o pai, Zezinho, não gostava nem um pouco de ver a filha, ainda criança, pegar condução para ir ao compromisso. Quem lembra é a própria atleta. “Fui convidada para treinar, mas, a princípio, eu não fui. Porque meu pai não deixava. Quando ele veio a falecer, minha mãe também achava que eu era muito nova para pegar ônibus sozinha”, conta Viviane.
O jogo só virou depois que a professora Carla insistiu muito. “Ela que convenceu a minha mãe para deixar eu ir com uma outra menina que também se destacou nas aulas e ia começar”, lembra a atleta. A versão é confirmada pela professora: “Convenci a mãe das duas! (risos) Era só um bairro de distância, mas realmente não era seguro para duas pré-adolescentes. Por isso, prometi que ficaria de olho e fiquei”.
Talvez por falta de divulgação da marcha atlética ou pela pouca idade, Viviane confessa que não tinha grandes ambições. As metas foram surgindo no decorrer da trajetória. “Eu comecei muito nova, tudo era novo para mim. Eu não tinha o conhecimento de competições, da Seleção Brasileira, não tinha esses sonhos ainda”, explica.
Mesmo com a resistência inicial, a professora de educação física que descobriu Viviane considera o incentivo familiar um ponto essencial. “Se a mãe dela não tivesse deixado lá no início, a gente não teria a Viviane, agora, competindo em uma Olimpíada. A primeira marchadora carioca em uma Olimpíada”, se emociona Carla. “Desde a escola, eu brincava que ela era a número 1”, completa.
Os ‘sins’ que a atleta recebeu na vida vieram de vozes femininas. Seja da professora que a descobriu, da irmã que a inspirou ou da mãe que a deixou treinar ainda tão nova. Para Luana, isso não é por acaso. A família Lyra, segundo ela, é repleta de mulheres de garra, assim como sua avó paterna, Rute.
“Ela é uma referência na nossa família, uma guerreira. Ficou viúva muito cedo, cuidou de oito filhos sozinha e sempre trabalhou. Eu acho que o sangue Lyra vem com um pouco da garra da nossa ‘coroa'”, admite Luana.
O talento para guerreira também acompanhou Viviane. De boneca da irmã, ela virou a “braba”. Sempre que pode, Luana vai às competições em que a atleta participa para torcer de pertinho. “Em uma competição no Engenhão, fiz até uma rima: ‘A braba tem nome. É pernalonga, é Viviane'”, canta a irmã mais velha.
O ‘corre’ de atleta
Diferentemente do percorrido por atletas de marcha durante uma competição, o caminho de Viviane rumo à Olimpíada não foi em linha reta. Mesmo tendo sido descoberta muito nova, ela chegou a migrar para a corrida e até tentou conciliar o esporte com a dedicação aos estudos e ao trabalho como vendedora em uma barraca no Rio de Janeiro.
Não trabalhar nunca foi opção. Aos 14 anos, Viviane já atuava em uma lan house e, depois, passou a vender pastel e caldo de cana na rua. Na época, o famoso ‘combo de feira’ era sua principal fonte de renda. “Foi como eu consegui me sustentar no esporte, na época em que eu ainda não recebia o apoio do Bolsa Atleta. Só comecei a receber depois que eu tive resultados esportivos mais expressivos”, explica Viviane.
A rotina era a seguinte: acordava, ia direto para a faculdade de nutrição, depois corria para o treino na Vila Militar. Viviane almoçava no local, treinava um pouco e emendava a correria no trabalho com a barraquinha de pastel e caldo de cana. De lá, ela ia para casa descansar, certo? Na verdade, não. A atleta saía da barraca e voltava à Vila Militar para fazer a segunda parte do treino durante a noite. “Eu chegava em casa quase meia-noite”, relembra.
No ziguezague da rotina, um acidente acabou impactando o desempenho. Em um dia chuvoso e com uma grande ventania, a barraca começou a voar. Com medo, Viviane desligou o fogão para que o óleo que fritava os pastéis esfriasse. Não adiantou. O tacho virou com tudo em cima dela.
“Virou na minha perna e eu tive queimaduras. Fiquei cheia de bolhas nos pés e no calcanhar e não conseguia treinar. Fiquei uma semana sem poder treinar porque eu não podia nem pegar sol, imagina? Quando eu saía, as bolhas ardiam muito”, relembra o sofrimento. Do incidente trágico, ficou apenas a cicatriz. Assim que conseguiu voltar a treinar, lá estava Viviane, outra vez, determinada e disciplinada com o objetivo.
Não teve acidente ou rotina puxada que fizesse a atleta desistir da carreira ou dos estudos. Entre uma competição e outra, ela conseguiu se formar em nutrição com bolsa do Prouni e fez especialização em suplementação nutricional esportiva. Não satisfeita, Viviane voltou à sala de aula para fazer outra graduação: educação física. Como tudo que se propõe a fazer, ela concluiu o curso com sucesso.
O que mais chamou atenção na conversa, durante todo o tempo, foi que Viviane falava como se fosse simples conciliar tanta função. Já para Luana, é inacreditável: “Ela é um exemplo de garra. Não sei como ela arruma tempo para tanta coisa”.
A irmã mais velha garante que a atleta sempre foi assim. “Ela sempre adorou estudar. Eu lembro quando meu pai falava: ‘Hoje vai faltar aula para a gente ir na casa do seu tio’, numa sexta-feira, por exemplo. Ela chorava, dizia que não queria faltar. Já eu comemorava (risos)”, conta.
A dedicação com os estudos e com a carreira no esporte vem mesmo desde muito pequena. Para a professora Carla Reis, auxiliar aquela menininha de 11 anos nunca foi difícil. “É muito fácil você pegar um diamante bruto que quer ser lapidado. Então, não tive grandes dificuldades”, considera.
Marchando atrás de sonhos
Quando marquei uma conversa com Viviane sobre sua trajetória, a atleta estava em treinamento na Colômbia. No entanto, nem a distância me impediu de ver o brilho no olhar da carioca ao relembrar tudo que passou no esporte. Por vezes, o rosto iluminado pela tela do computador parecia sério, principalmente ao falar em metas na marcha atlética. O semblante mudava quando ela passava a falar em sonhos.
A partir daí, é fácil perceber que tudo está ali, vivo, pulsando. A primeira viagem de avião, um sonho até então difícil de realizar e que se tornou verdade por meio do esporte, as várias viagens para países como Espanha e República Tcheca, e até o aprendizado de novos idiomas. Tudo foi possível por causa da marcha atlética.
“Desde pequenininha eu comecei a realizar meus sonhos através do esporte. Um deles era trabalhar com algo com que eu pudesse conhecer outras culturas”, conta Viviane. Não satisfeita em competir na marcha atlética, além de ser nutricionista e professora de educação física, ela se empenha em se tornar poliglota.
A atleta, que já fala inglês fluente, é apaixonada por espanhol. Acompanhando ela nas redes sociais, isso fica claro. Entre os stories de “buenos días” toda manhã e frases motivacionais no idioma, ela mostra seu encantamento pela língua. Porém, como tudo na vida de Viviane, o inquietamento nos estudos e Paris-2024 como meta fez iniciar outro curso: o de francês.
“Eu tracei um objetivo de que se eu fizesse o índice olímpico, eu ia aprender pelo menos o básico do francês. Então já comecei a estudar o francês, que é mais um sonho”, explica. Para chegar no índice olímpico, Viviane enfrentou muitos treinos e um susto que jamais vai esquecer.
Em meio à ansiedade para garantir uma vaga nos Jogos de Paris, a atleta recebeu o diagnóstico de hepatite às vésperas do Grande Prêmio de La Coruña, na Espanha, em junho do ano passado. Na semana da competição, o corpo da atleta começou a dar sinais de que algo estava errado. Viviane passou mal e chegou a sentir enjoos. Com os sintomas, ela fez uma série de exames que acusou a doença.
A notícia foi um balde de água fria. “Me afastei totalmente do treino, sentia muito cansaço. Eu fiquei junto da minha irmã, ela me ajudou bastante também. Fiz uma dieta muito restrita, diminui bastante o peso, fiquei bem magrinha, bem fraquinha”, relembra. Porém, mais que a saúde física, ela precisou cuidar também da saúde mental.
“Nesse período, tive que trabalhar muito o psicológico. Para a gente que é atleta, a cabeça está ali pensando nas provas, nas competições. Então tínhamos toda uma programação e, de repente, tive que pausar. Falei para mim mesma: ‘calma, tudo tem seu tempo. Confia em Deus e trabalha'”, relata Viviane.
O episódio foi mais um desafio superado na vida da atleta. Depois do susto, ela conseguiu alcançar o índice olímpico, em agosto de 2023, durante o Campeonato Mundial de Atletismo em Budapeste, na Hungria. Desde então, Viviane está confirmada na briga por uma medalha na marcha atlética para o Brasil.
Rumo à Paris
Sobre a expectativa para os Jogos Olímpicos de Paris, Viviane admite que está lá em cima. Durante a nossa conversa, ela estava esperando classificar o Brasil no revezamento. No dia 22 de abril, a atleta deu ‘check’ em mais essa meta de sua lista pessoal.
Com o atleta Caio Bonfim, Viviane Lyra garantiu a vaga brasileira no revezamento misto de marcha atlética no Mundial disputado em Antalya, na Turquia. Em todas essas vitórias está o marido e treinador, Luís Paulo.
Ele, que era atleta de corrida, passou a atuar na marcha com a esposa. O casal se conheceu por meio do atletismo e o ‘match’ foi tanto que ele até virou treinador dela. “Por ser esposo e passar bastante tempo juntos, além das horas de treinamento, acho que faz com que a sintonia aumente”, garante Luís Paulo.
O treinador, que também auxilia outros atletas da equipe do Praia Clube, do qual Viviane faz parte, pensa com otimismo em Paris. “A expectativa é a melhor possível. Ela tem treinado muito bem e feito bons resultados nas competições, tem evoluído a cada ano. E nos Jogos Olímpicos o objetivo é fazer o melhor possível, tentar buscar uma medalha, quem sabe”, aposta o marido de Viviane.
A estratégia usada por Luís Paulo para sua atleta chegar lá é simples: “Próximo às grandes competições, trabalhamos ritmos mais intensos e menores volumes de treinamento”, explica.
Com a participação nos Jogos e a tão sonhada medalha, Viviane espera trazer mais representatividade para um esporte pouco popular. “Espero poder inspirar outras gerações de atletas a acreditarem nos seus sonhos e batalhar por eles”, destaca a marchadora.
Para a professora que apostou nela lá no início, falas como essa são essenciais para a divulgação da modalidade. “Acredito que a marcha vem sendo mais falada desde que sediamos uma Olimpíada. Agora, as pessoas não fazem mais bullying, né? Não ficam mexendo com os atletas. Antes, era porque é um movimento muito diferente do que as pessoas estavam acostumadas, o ‘rebolado’. Agora, não”, explica Carla Reis.
Quando quer incentivar os alunos a tentar seguir no atletismo, a professora dá o exemplo de uma menininha de 11 anos que um dia esteve naquela mesma sala de aula. “Sempre falo dela. Digo sempre: ‘Ela foi como vocês e chegou lá com determinação'”, conta Carla, emocionada.
Hoje, Viviane é exemplo na escola onde estudou e até dentro de casa. Luana, a irmã, chora ao falar do que sua “boneca” representa: “Ela é minha inspiração. A gente se fala todo dia por telefone e ligamos de vídeo quando dá, para matar um pouco a saudade. Estou aqui para apoiar sempre, em qualquer decisão. Para nossa família, ela é a nossa campeã”.
A menina de 11 anos que impressionou a professora de educação física naquele treino improvisado certamente se orgulha da marchadora Viviane Lyra. Quem garante é a própria atleta. Até mesmo Zezinho, que resistiu em deixar a filha sair para treinar tão pequena, estaria feliz.
“Por mais que meu pai não esteja mais aqui, acho que ele se orgulharia bastante. A minha vó também. A eles, sou muito grata por cada ensinamento ao longo do tempo que vivemos juntos”, diz Viviane, com a voz embargada pelo choro.