GERAL
Bispos da Universal obrigam pastores a emagrecer e vetam casamentos inter-raciais, diz ex-religioso
A cobrança vinha por WhatsApp. A foto da balança marcava 124,6 quilos. Muito, para os padrões da Igreja Universal do Reino de Deus. “Já perdeu quanto até agora?”, questionava o superior. “Até agora foram 11 quilos”, respondeu o pastor Robson Fonseca da Silva. “Vou continuar a luta para chegar nos 95 quilos”.
Segundo Silva, as mensagens com fotos da balança precisavam ser enviadas a cada 15 dias ao bispo Josué Amorim, responsável pela Universal no Piauí. Silva diz ter cumprido uma rotina de cobranças até decidir, em 2020, se desligar definitivamente da instituição. Hoje, ele trabalha como motorista de aplicativo.
Morador de Campo Grande, na zona oeste do Rio de Janeiro, Robson Fonseca da Silva começou a frequentar a Igreja Universal do Reino de Deus aos 12 anos. Aos 16, já era obreiro. Aos 19, virou pastor, função que exerceu por 24 anos. Hoje, aos 47 anos, Silva tornou-se um dos críticos da Universal.
Seu desligamento definitivo foi em março de 2020, junto com a mulher, a então obreira Luciana Mendes Campos da Silva. Em processo trabalhista que move na Justiça contra a Universal, Silva diz ter sido demitido pela igreja. Afirma, porém, que já havia decidido sair ao ver a orientação da Igreja mudar. “Passou de ser a de ganhar almas, a ser exclusivamente de comprar empresas e extrair cada vez mais valores dos fiéis”, diz na ação.
“Havíamos decidido sair por ter visto tudo o que a gente viu acontecer na Igreja. Essa cobrança excessiva, as vendas de livros, de mel, de ingressos de cinema para ver o filme do bispo, são coisas que não batiam com o Evangelho. Não tinha nada a ver com a pregação que eles dizem fazer da Bíblia”, explicou.
A discriminação devido ao peso, no entanto, foi o que mais o abalou: Silva disse ter se sentido humilhado na Igreja. Ele chegou a pesar 157 quilos. Atualmente, está com 140.
Ao Intercept, a Igreja Universal do Reino de Deus negou as denúncias. “Como vítima maior do preconceito religioso no Brasil — escancaradamente demonstrado por parte de algumas mídias —, repudia e combate toda forma de discriminação”, disse a instituição, por meio de sua assessoria de imprensa. Leia aqui a resposta completa.
Gordofobia na Universal: emagrecer ou sair fora
Então pastor em Teresina, no Piauí, em fevereiro de 2017, após ser transferido do Rio de Janeiro, Silva afirma que foi chamado pelo responsável, o bispo Josué Amorim, para dar explicações por que não emagrecia. Disse ter sido informado pelo bispo que voltaria a ser auxiliar de pastor, caso não emagrecesse.
“Se não perder peso, é punido. Volta para o fim da fila, volta a ser auxiliar”, determinou o bispo, segundo Silva, em conversa no escritório do líder da Universal, testemunhada também por sua mulher Luciana.
Em sua ação contra a Igreja Universal, o ex-pastor incluiu fotografia em uma balança e reproduções de conversas em aplicativos que comprovariam as cobranças para que emagrecesse. Ele perdeu a ação em julgamento na primeira instância, na 38º Vara do Trabalho do Rio de Janeiro, mas recorreu ao Tribunal Regional do Trabalho alegando que suas testemunhas não foram ouvidas. A ação então foi retomada e segue em fase de depoimentos, até um novo julgamento.
Você começa a fazer loucuras para emagrecer.
Segundo Silva, a discriminação começou em 2017, e ele continuou na Igreja por mais três anos. “A gente se sente, assim, impotente, né. Porque é o responsável falando. A gente não era treinado para esse tipo de coisa. Mas você se sente cobrado para perder peso. Você começa a fazer loucuras para emagrecer. Caminhar, correr para a academia, tomar remédios. Tudo isso eu fiz na época, com o intuito de perder peso para não ser punido”, relatou.
Robson Silva me contou que caminhava duas ou três horas por dia para perder peso. Em alguns dias, andava de manhã e à tarde. “Procurei um médico, entrei numa dieta bem severa. Cheguei a ficar com 116 quilos e eles achavam que não era suficiente. E eu sou alto, tenho massa muscular. Acho que estaria dentro do normal. Mas havia muita pressão, ainda assim. Hoje, chegar a 88 quilos, que eu tinha aos 17 anos, não consigo mais”, afirmou Silva.
Segundo o ex-pastor, nenhuma justificativa lhe foi apresentada sobre a razão pela qual teria de perder peso. “É uma coisa assim, da cabeça deles. O pastor tem que ser um exemplo, um boneco, um modelo. Eu não sei nem descrever. O que passa na cabeça deles quando eles cobram esse tipo de coisa? Não sei. Porque não faz o menor sentido. Até porque, obeso ou magro, cor de pele, alto, baixo, não interessa. Isso aí nunca influenciou e jamais deixei influenciar no trabalho”.
Silva diz que a discriminação contra os obesos se tornou prática comum na Igreja Universal. Foto: Fabio Alarico Teixeira
Gordofobia coincide com ascensão de genro de Edir Macedo
Esse tipo de cobrança não existia na Universal até 2017, segundo Silva. Ela teria começado a ocorrer justamente no período em que o bispo Renato Cardoso, casado com Cristiane Cardoso, filha do bispo Edir Macedo – o principal líder e fundador da Universal –, ascendeu à posição de sucessor e número dois na hierarquia da instituição.
A discriminação contra os obesos se tornou prática comum na Igreja Universal, de acordo com o ex-pastor Silva. “Não era só comigo. Tinham outros pastores obesos e a cobrança sobre eles existia da mesma forma. A vontade deles é que não tivesse pastor obeso. Ou o pastor emagrecia ou saía fora. Ou ia para o fim da fila”.
O Intercept teve acesso à reprodução de um outro diálogo, em aplicativo de mensagens, no qual uma ex-obreira namorada de um pastor, que não se identificou, era também cobrada por uma liderança da Igreja pelo fato de ser obesa. Um líder da instituição religiosa dizia, nesse diálogo, que o namorado da obreira estava sofrendo “vendo os pastores sendo abençoados e só ele ficando para trás”, por causa da obesidade dela. Os membros pretendiam se casar e a condição imposta era que a obreira emagrecesse.
Mais da metade dos brasileiros – cerca de 57% da população – estava com sobrepeso em 2021, segundo o programa Vigilância de Saúde do Ministério da Saúde. A gordofobia, o preconceito contra pessoas acima do peso, não é crime previsto na legislação brasileira. Porém, pessoas atacadas e ofendidas têm conseguido o direito à indenização na Justiça, por danos morais ou injúria.
Igreja Universal funciona como uma empresa
Silva era líder de pastores em nove templos em Teresina. Atuou também no município de Parnaíba, no litoral piauiense. No Rio, ele foi pastor na sede da Universal, na Abolição, nos bairros de Campo Grande, Jacarepaguá, Curicica e Bangu, e nos municípios fluminenses de Seropédica, Barra Mansa, Resende e Volta Redonda.
Em sua ação, reivindica direitos trabalhistas pelo período em que atuou na Universal. Apesar de o presidente Lula ter sancionado, em agosto, lei que proíbe vínculo empregatício entre igrejas e religiosos – alterando a Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT –, advogados que defendem ex-pastores em causas na Justiça entendem que, quando é comprovado o cumprimento de metas, obrigações e horários, a relação trabalhista entre patrões e empregados estaria configurada, independentemente da nova determinação legal.
“Eles dizem que (o trabalho na igreja) é uma atividade vocacional. Falam que o pastor não tem direitos trabalhistas e nada a receber porque é uma vocação. Só que no caso da vocação não tem cobrança. Mas o que mais acontece lá dentro é a gente ser cobrado”, me disse Silva.
O ex-pastor da Universal afirma não ter tido escolha quando a mudança para o Piauí foi imposta pela instituição. “Ou você faz o que eles querem ou vai para o fim da fila. Então não é vocacional. Dizem que é um chamado e, quando a gente entra lá, a gente vê que não é nada disso. É uma empresa, literalmente. A Igreja Universal funciona como uma empresa. Então, se é uma empresa, tenho os meus direitos”, defendeu Silva.
A Universal reafirmou ao Intercept que a atividade pastoral “não é um emprego, mas uma vocação”, mencionando a recente lei sancionada por Lula. “Todos aqueles que se colocam à disposição da Obra de Deus o fazem motivados e cientes do chamado Divino — e por iniciativa própria”, disse a instituição. Segundo a Universal, a “maioria esmagadora” dos Tribunais do Trabalho tem o “entendimento consolidado de que não é possível o reconhecimento de vínculo empregatício entre ministros religiosos e igrejas”.
Silva também disse que todos os pastores são pressionados a aumentar as metas de arrecadação nos templos. “É uma pressão muito grande pelas metas. Muito forte. Tem que crescer, sempre. Se você pegou uma igreja com R$ 5 mil de arrecadação, ela não pode dar menos de R$ 5 mil. Tem de aumentar para R$ 6 mil. Se chegar a R$ 7 mil, não poderá depois dar menos de R$ 7 mil. É uma empresa”, afirmou.
Ele contou que, no final dos anos 1990, quando atuava no município de Seropédica, no Rio, o templo em que era auxiliar arrecadava R$ 9 mil ao mês. Uma fiel recebeu uma indenização e, naquele momento, fez uma doação de R$ 7 mil. Assim, foi registrada uma arrecadação no mês de R$ 16 mil.
No mês seguinte, não veio um outro dízimo naquele valor. Silva e o pastor titular, então, tiveram de se desdobrar para conseguir chegar a arrecadação a R$ 14 mil no mês seguinte. “Mas ele (o titular) foi chamado e cobrado. Foi dito para ele que se caísse o valor no mês seguinte, ele seria transferido, e ele acabou sendo mandado para o Nordeste. Às vezes é bom nem tentar buscar uma doação alta de alguém, pois isso ia acabar prejudicando todo mundo depois. Tinha um pastor lá que pedia a Deus para isso não acontecer, porque ia prejudicá-lo. Depois você não ia conseguir de novo uma oferta como aquela e seria cobrado”.
Na ação, Silva incluiu reproduções de conversas com superiores nas quais constavam metas de arrecadação estabelecidas – por exemplo, para o templo de Parnaíba, que era de R$ 34,5 mil. Na oportunidade, havia sido arrecadado R$ 24,3 mil no mês e, de acordo com o “Relatório geral da região”, faltavam R$ 10,1 mil.
A Universal diz que não há a existência desse tipo de metas. Segundo a igreja, é “impossível saber quantas pessoas comparecerão aos cultos, ou sequer o valor das ofertas que serão entregues, sempre por liberalidade, uma vez que a doação é voluntária e, principalmente, sem qualquer identificação do doador”.
Ex-pastor espera que haja uma reparação em relação às humilhações que diz ter sofrido na Igreja. Foto: Fabio Alarico Teixeira
Na Universal, negro não podia casar com branca, nem branco com negra, diz ex-pastor
Na ação, o ex-pastor contou ainda ter sido obrigado a se submeter a uma cirurgia de vasectomia em 1999. Ele disse ao Intercept ter realizado a operação em uma clínica no bairro do Méier, na zona norte do Rio, mas não se recorda do nome do estabelecimento e do médico nem o endereço. “Eles determinam que o pastor tem que fazer a vasectomia. Fiz ao lado de outros dois pastores. Mas faz 24 anos”, justificou. “Um monte de pastores, até hoje, faz a vasectomia até antes de casar. Eles sabem que isso é verdade”, enfatizou.
Silva citou uma outra conduta na Universal que considera discriminatória e preconceituosa. “Houve um tempo lá dentro que o pastor tinha de casar com uma noiva, uma obreira, da mesma cor de pele que ele. Por exemplo: um branquinho não podia casar com uma moreninha, e vice-versa. Essa prática ainda existe lá dentro, até hoje”, ele narra.
“Eles tinham uma justificativa: diziam que se o pastor amanhã fosse para a África do Sul, então aquela moça não iria para lá, apesar de África do Sul também ser um lugar de brancos lá. E se fosse para um outro país africano, onde só tivessem pessoas negras, então essa esposa branquinha poderia sofrer naquele país”, contou Silva. “A gente via isso como um absurdo. Como é que vão determinar uma coisa dessa? Mas existia esse tipo de justificativa. Enfim, negro não podia casar com uma branca, nem branca com um negro”.
Se você pegou uma igreja com R$ 5 mil de arrecadação, ela não pode dar menos de R$ 5 mil.
De acordo com Silva, a Universal sempre nega os atos de discriminação, mas qualquer ex-integrante da instituição pode confirmar essas denúncias. “A respeito desse tipo de coisa aí, essa discriminação, a gente sabe que não vai acabar. Lá dentro, eles morrem dizendo que não fazem isso. É impressionante como mentem, descaradamente. Se eles forem indagados por isso, vão dizer que isso é mentira, que não fazem. Mas todo mundo lá dentro sabe que isso é uma prática deles”.
A igreja nega as denúncias, se diz vítima de preconceito religioso e afirma que combate a discriminação e o racismo. Também afirma que há “centenas de casais” inter-raciais na instituição.
‘Estamos trabalhando para Jesus ou para o Macedo?’
Silva disse esperar que haja uma reparação em relação às humilhações que diz ter sofrido na Igreja. “Que a justiça seja feita, para a gente poder seguir a nossa vida. Foi uma vida inteira que a gente deixou ali, 24 anos como pastor”, ressaltou.
“Numa ‘Fogueira Santa’, em 2016, em uma pregação, o bispo Macedo disse que se tivesse R$ 1 milhão ele investiria tudo em almas. Aí, meses depois, a gente veio descobrir que, naquele mesmo ano, ele comprou uma mansão nos Estados Unidos por milhões de dólares. Aí eu falei para a minha esposa: ‘Estamos trabalhando para Jesus ou para o Macedo? Aí, resolvemos sair”, avaliou.
A ex-obreira Luciana, sua mulher, é estudante de pedagogia. Silva diz levar uma outra vida hoje como motorista de aplicativo. “Dirijo 12 horas por dia. Mas é melhor do que estar lá dentro do jeito que a gente estava. Aquelas cobranças, isso não estava escrito na Bíblia. Jesus não ensinou, não mandou fazer nada disso. Isso é coisa do homem. Eu estou com a minha esposa até hoje. Não virei as costas para Jesus e para a palavra de Deus”.