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“Diziam que iam nos matar”: veja história de irmãos presos na infância pela ditadura
Aos 7 anos, Édson Teles mentia para os colegas sobre o próprio pai. Mas, ao contrário do que muitas crianças faziam, ele não inventava um grande feito ou uma grande profissão. Édson dizia que o pai estava internado em um sanatório, “para tratar da cabeça”.
“Imagina você, em uma escola lotada de quadros em homenagem a [João] Figueiredo, no meio de uma ditadura, falar que, na verdade, seu pai estava preso na cadeia? Era inconcebível. Então, eu e minha irmã precisávamos pensar em uma mentira bem bolada. Era melhor falar em sanatório”, relembra ele ao Metrópoles.
O universo de invenções tomou conta da história de Édson e de sua irmã, Janaína Teles, a partir do dia 28 de dezembro de 1972. Nessa data, os seus pais — Maria Amélia de Almeida Teles e César Teles — foram presos pela ditadura militar.
Os militantes, integrantes do PCdoB, foram presos sob a alegação de subversão. Mais tarde, eles foram os responsáveis pela única condenação do coronel Carlos Brilhante Ustra como “torturador”.
O que era uma prisão, porém, caminhou para um trauma ainda maior. No dia seguinte, os dois irmãos foram conduzidos por militares para uma sala de tortura do antigo DOI-CODI, em São Paulo, para assistir aos próprios pais em sofrimento.
“Dentro do camburão, vimos um monte de armamento pesado apontado para nós. Ali eu já sabia que tinha alguma coisa errada. Quando perguntei o que estava acontecendo, lembro de um militar se virar pra mim e gritar: ‘Cala a boca, comunista!’. Eu nem sabia o que isso significava”, conta Janaína Teles sobre o episódio ocorrido quando ela tinha 5 anos. Édson, mais novo, tinha apenas 4.
A história dos dois irmãos será revisitada na próxima quarta-feira (28/6), em sessão da Comissão de Anistia do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania. No processo, Édson e Janaína pedem a revisão de uma decisão emitida ainda no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em 2007, sobre o episódio que viveram quando crianças na ditadura militar.
Cenas da sala de tortura
Édson e Janaína contam que ficaram cerca de 10 dias caminhando entre o DOI-CODI, onde os pais estavam presos sob o regime militar, e uma residência clandestina próxima à região, apesar de não se lembrarem do endereço exato.
“Chegaram a nos levar à cela da nossa mãe algumas vezes durante esse período. Diziam que iam nos matar, que sumiriam com a gente. Em uma das vezes, levaram a gente para a Cadeira do Dragão [instrumento de tortura da ditadura militar] para vê-la sofrer”, afirma Janaína.
As lembranças dessa época são turvas, considerando a idade das duas vítimas. Édson se lembra da bola de futebol que improvisou com um papel, para jogar no pátio do quartel. Enquanto isso, Janaína se recorda de uma luz incômoda e forte que partia de uma das cozinhas da residência clandestina, enquanto tentava dormir em uma beliche militar.
Os dois, no entanto, recordam-se plenamente das mentiras inventadas pelos militares.
“Eles nos diziam que nossos pais tinham nos abandonado. Imagina isso para uma criança? Não tem como não lembrar. Mas eu sabia que era mentira. Nossos pais não fariam isso com a gente”, diz Janaína.
Esquema de sequestro de crianças
Passados os 10 dias, os irmãos foram levados para a casa de um policial casado com a irmã do pai das crianças. Os militares que conduziram a operação insistiam em dizer para Édson e Janaína que eles haviam sido abandonados. Já Amélia e César Teles, ainda presos, não tiveram notícias das crianças por seis meses seguidos.
“A ditadura militar no Brasil, assim como em outros países da América Latina e da Europa, seguiu esse padrão: os militares sequestravam os filhos de militantes, guerrilheiros e opositores, e levavam para ‘novas famílias de militares’, para criar uma política de terra arrasada no inimigo. Boa parte dessas crianças nunca mais foi reencontrada pelos parentes biológicos”, explica Eduardo Reina, jornalista e autor do livro “Cativeiro Sem Fim: as histórias de bebês, crianças e adolescentes sequestrados pela ditadura militar no Brasil”.
Enquanto ficaram na casa do policial, Janaína e Édson foram ameaçados e proibidos de tocar no nome da mãe. A eles restava o trabalho doméstico, junto a outros funcionários da casa.
Os irmãos só foram localizados e resgatados da família militar seis meses depois, quando uma das irmãs de Amélia, tia Criméia, foi libertada da prisão e descobriu que poderia pedir a guarda das crianças. A cena de reencontro, como Janaína relembra, era digna de um filme.
“Ela vinha nos visitar escondida, nos esperava aparecer no jardim para combinar os detalhes da fuga. Nos instruiu a arrumar a mochila, porque, por volta das 18h, passaria para nos levar para casa de novo”, conta a mais velha.
Comissão de Anistia
Hoje, tanto Édson como Janaína são professores universitários e pesquisam sobre assuntos relacionados a regimes ditatoriais na América Latina: ele, na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp); ela, na Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG).
A história contada será revisitada na próxima quarta-feira (28/6) pela Comissão de Anistia, junto a outros 17 casos. O caso retorna para a comissão porque os irmãos discordam da decisão tomada pelo órgão em 2007. Nela, ficou decidido que os dois receberiam uma compensação financeira do Estado pelos traumas vividos até 1977, quando o pai foi libertado da prisão.
Os irmãos alegam, no entanto, que a perseguição política aos dois não se resumiu a esse período.
“Minha mãe foi libertada depois de 11 meses na prisão. Já o meu pai ficou 4 anos preso ao todo, mas em liberdade condicional. Só foi anistiado com a Lei da Anistia, em 1979. Até essa data, nós vivemos sob o medo e a observação constante dos militares. Recebíamos instrução para não andar em terrenos ou paradas de ônibus vazias”, conta Édson.
Por isso, os dois solicitam o pagamento máximo previsto em lei, de R$ 100 mil, como uma forma de indenização pelos traumas e episódios vividos durante a ditadura militar.
“Também esperamos um pedido de desculpas oficial do governo federal pela demora na abordagem do caso. Violências vividas em 1972 e 1973 estão sendo julgadas apenas agora, em 2023. Precisar falar sobre isso de novo e de novo, querendo ou não, é um processo retraumatizante. A libertação do nosso pai não deu fim aos nossos sofrimentos”, destaca Janaína.