Uma discussão entre duas famílias no restaurante Rodeio, do shopping Iguatemi, provoca reflexão sobre a intolerância social em que estamos mergulhados

“Ela é uma criança, tem só 6 anos e vai fazer o que ela quiser, entendeu?”, repetia exaustivamente a avó da menina que, junto da prima, escutava música alta no TikTok e fazia coreografias quase que grudada numa família que estava na mesa ao lado.

Domingo, hora do almoço, recepção de espera lotada do restaurante Rodeio, no shopping Iguatemi. As pessoas dividem cadeiras, se apertam no sofá de couro e, civilizadamente, cuidam para não invadir o espaço do outro. Mas como toda conduta de “boas maneiras”, há sempre as exceções e cá estamos com a cena presenciada.

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Uma família de nove aguardava entre duas mesinhas redondas pequenas. Avô, filhas, netos e netas. Uma outra família chega e um dos gerentes pede que os garçons montem uma sequência de outras grudadas, encostadas na parede, para que caibam todos juntos. Tinha ali algo em torno de 20 pessoas entre avós, pais, tios, sobrinhos e netos.

De um lado, os adultos, no meio, os jovens e na ponta, as crianças. Duas das meninas logo se sentam no sofá, pegam o celular e entram no TikTok. O som está extremamente alto e chama a atenção de dois adultos parte da primeira família 1 – vou chamar assim – que estão na mesa vizinha.

A mulher olha para as meninas algumas vezes, sorri, procura o adulto responsável pelas com os olhos ao longo da extensa mesa, mas nada. Ninguém se prontifica. O som continua alto e atrapalha a conversa da família 1. É visível até para quem está mais afastada como eu.

Uma das pessoas da família 1 resolve pedir que as crianças abaixem um pouquinho o som do celular e é aí que se dá o começo da discussão. Elas não gostam e vão até a mãe reclamar que, por sua vez, manda aumentarem o som – veja só. A família 1 olha descrédula para a postura da família 2, que não se intimida e levanta para tirar satisfação.

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“Ela é uma criança, tem só 6 anos e vai fazer o que ela quiser, entendeu?”. “Isso aqui é um lugar público, ela tem o direito de fazer o que quiser e se quiser escutar música alta, ela vai escutar sim. Minha neta escuta o que ela quiser e você não tem o direito de falar nada”.

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As pessoas da família 1, em meio a repetidas falas da avó que esbravejava em defesa da neta, tentava dizer que eles só estavam pedindo para que a menina abaixasse o som do celular e não que ela escutasse outro tipo de música ou qualquer outra insinuação feita, mas em vão. A família 2 se exalta e sábia família 1 que cessou a discussão enquanto as mesas ao lado olhavam querendo saber mais do bafafá.

Bafafá este que não é fato isolado. Escândalos, brigas, discussões e até agressões entre pessoas supostamente educadas e civilizadas parecem estar cada vez mais comum. Vivemos um período de profunda intolerância social em que o direito de ir e vir e a liberdade de expressão são pisoteadas em nome do “eu posso, eu quero, eu faço e quem manda na minha vida sou eu”.

Mas liberdade é um conceito que, para se manter de pé, precisa de regras. Pode até parecer antagônico, mas não existe liberdade se não houver o cumprimento de regras, normas e leis. Além do senso da boa educação, é claro.

O que estou querendo dizer é que a liberdade de um ser humano só pode ser exercida se ela não invadir a liberdade do outro. A partir do momento em que o meu “ser livre” se alastra por um espaço que não é meu, não é mais liberdade. E digo mais: não tem idade para a regrinha básica de convivência social.

Vale às crianças, adultos e idosos. Estejam eles em espaço público ou privado. Ninguém, em sociedade, tem o direito maior que o outro – inclusive, está na Constituição Brasileira. Ninguém tem o direito de “fazer o que quiser” só porque tem 6 anos ou só porque tem 80 anos. Ser livre está longe – muito longe – do desejo de “fazer o que quiser onde bem entender”.

Mas parece que está difícil de entender o funcionamento da vida social. Perdemos o traquejo pós-pandemia? Ou perdemos a ética e a moral? A educação, talvez? Fato é que perdemos e pouca gente parece perceber a mudança. Pouca gente parece entender que para educar um ser humano cidadão deste mundo é preciso impor limites. Dizer “não, isso aqui não pode porque está atrapalhando as pessoas ao lado”.

Educar requer dizer “não” muitas e muitas vezes. Requer não invadir a liberdade do outro para que a sua também possa ser respeitada. Requer respeito. Requer não deixar o filho fazer tudo que ele quer, só porque quer. Algo que parece muito óbvio, mas que tem dado sinais de que precisa de reforço nos tempos atuais.

Parece que ainda não nos livramos daquele mal do “você sabe com quem está falando?”. Porque a partir do momento em que eu autorizo uma criança a desrespeitar outra pessoa, estou virando tudo de ponta cabeça e dando ponta pé no conceito de educação e na possibilidade de se viver de maneira civilizada.

Eu autorizo essa mesma criança a desrespeitar a professora ou professor, a funcionária da casa, o garçom do restaurante e por aí vai. Certamente esta criança, assim como sua família, vão encontrar pela frente pessoa capazes de levantar da mesa e dizer a elas “sinto muito, mas sua filha não pode fazer o que quiser porque o mundo não funciona assim”, mas, infelizmente, muitas pessoas vão se calar porque socialmente pertencem a uma classe social mais baixa e “não têm permissão” de responder. Não é assim que se perpetua o preconceito e o racismo? São facetas.

E são também facetas sociais à intolerância destes tempos. A incapacidade de escutar o que o outro fala, compreender e respeitar. Respeito, minha gente. Onde foi que esconderam essa palavrinha tão pequena, tão fácil de se pronunciar?