GERAL
“Enem é ponto de inflexão, mudou minha vida”, diz médica do Exército formada em federal
Milena Santana da Conceição, de 28 anos, já tinha pensado em cursar medicina, mas nunca achou que a área era para ela, sempre foi algo distante. Também, pudera, na sua família não havia médicos, e tampouco, condições financeiras para pagar uma faculdade desse nível. O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) mudou a vida dela da jovem cubatense (SP): pelo Sistema de Seleção Unificado (Sisu), formou-se na Universidade Federal do Paraná, e hoje trabalha como médica no Exército.
Esse é o segundo episódio da série de reportagens Onde o Enem me levou?, que conta a história de vários brasileiros que, a partir do exame, conquistaram marcas profissionais, pessoais e financeiras transformadoras. Ao todo são cinco episódios que serão publicados no Terra ao longo das próximas duas semanas. Acompanhe e se inspire nesses relatos.
A jovem foi incentivada desde muito nova a se dedicar aos estudos, e acumulou bolsas ao longo do pouco tempo de vida. A primeira veio no ensino fundamental em uma escola particular. Já o ensino médio foi feito no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP), em conjunto com o técnico.
Foi durante esse período que descobriu que era possível estudar sem pagar nada. “Até então, não tinha noção que existiam faculdades públicas e que não precisava pagar para estudar”, explica em entrevista ao Terra. Entre o primeiro e segundo ano, começou a pensar em medicina, mas o dinheiro para pagar o curso ainda era uma barreira.
“Minha família não é rica, então para mim era uma coisa meio: não posso pensar nisso. E ali no Ensino Médio, que todo mundo fala de faculdades públicas, eu comecei a pensar”. Em 2012, prestou como treineira o Enem.
No ano seguinte, já no quarto ano do colégio –pois o IFSP tem quatro anos de ensino médio–, conseguiu sua segunda bolsa de estudos, desta vez, para um cursinho preparatório de vestibular em Santos. Conciliava a escola com o cursinho, que fazia no período noturno. Prestou o exame mais uma vez, mas não passou.
Maratona
Milena conseguiu sua terceira bolsa de estudos para outro cursinho preparatório, também na cidade vizinha, e viajava até Santos todos os dias. Acordava às 5h, pegava um ônibus e chegava ao cursinho por volta das 7h10. “Às vezes, eu ia dormindo quando dava”, relembra ela, que precisava estar descansada para enfrentar o dia e a maratona de estudos intensa.
As aulas eram só de manhã, mas à tarde, ficava no local para fazer os exercícios e simulados. Voltava para a casa ao anoitecer, onde estudava até às 23h, chegando a mais de 12 horas de estudos por dia. Não se engane em achar que a rotina de quem “só estuda” é fácil. A cobrança é enorme, ainda mais para quem só tem a opção de estudar de graça.
“Eu me cobrava bastante. Então, o meu psicológico era todo voltado para isso. Eu sempre pensava: ‘está ruim, mais uma hora eu vou passar’. Mas eu não sei se eu não tivesse passado naquele ano, como eu ficaria no ano seguinte, porque eu entreguei tudo de mim naquele ano. Estou aqui, estou dando 12, 13 horas por dia para chegar lá. Abri mão de muito fim de semana, de não ter uma atividade física, não ter mais um grupo de amigos que eu saia sempre”, explica.
Do meio para o final do ano, o psicológico cobrou, e a jovem precisou poupar alguns dias para descansar e se sentir bem e disposta novamente. Voltou a sair aos sábado com os amigos às vezes, e até ia para a praia no domingo. “Mas meio que tinha combinado comigo mesma para manter os estudos em dia. Poder ter um dia de descanso, porque eu não aguentaria o ano inteiro naquela batida. De segunda a segunda.”
Milena está entre os 4,5 milhões de candidatos pretos e pardos que se inscreveram no Enem naquele ano (veja tabela abaixo).
A conquista
Até enxergar o Enem como sua maior possibilidade, Milena era crítica da prova. Percebeu que o teste era mais interpretativo, e o estudo foi mais focado em redação, que era o que alavancava muito a nota.
“Eu vi que a minha maior possibilidade era pelo Enem, até pelo valor mais acessível da prova e de abrir porta para várias universidades, porque cada vestibular, acho que era [na época] R$ 100 [cada inscrição], então, se eu fosse prestar 10, seria R$ 1.000. Com o Enem, não. Era uma taxa única que eu poderia abrir portas para várias”, esclarece.
Entender como a prova funcionava a ajudou a passar mais rápido. Quando chegou a hora, se inscreveu no Sisu, e enquanto vários outros estudantes tentam por muito tempo uma vaga no curso super concorrido, a médica conseguiu após dois anos de tentativa. A dedicação valeu a pena, fazendo sua nota chegar a quase 800, e então, a tão sonhada vaga em medicina veio.
A jovem não conseguiu somente uma, mas duas vagas para cursar medicina e pode escolher entre a Universidade Federal do Paraná (UFPR) e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), escolhendo a opção paranaense.
“Num primeiro momento não caiu a ficha, porque na minha família ninguém tem faculdade, tirando a minha mãe e o meu pai. O restante ninguém nunca tinha ido, muito menos uma pública. Então, eu fui a primeira de uma pública e em Medicina. Eu acho que o Enem é um ponto de inflexão, porque mudou tudo. Assim que eu entrei na universidade, minha vida virou completamente. Acho que me abriu muitas portas, de amadurecimento, de sair de casa, ir para uma cidade completamente diferente, uma cultura diferente. Quando a gente passa, se sente muito capaz”, reflete.
Milena foi um exemplo para várias outras pessoas de sua família. Seu irmão conseguiu entrar em engenharia na Universidade Federal do ABC (UFABC), e uma de suas primas faz biblioteconomia na Universidade de Brasília (UnB). Outra prima, mais velha, está cursando pedagogia, e sua tia está tentando entrar na faculdade também. “Então, foi bom para os outros da minha família verem que também dava”, afirma.
Entrada no Exército
A médica se formou em 2021, no auge da pandemia da covid-19. Dois dias depois, estava assumindo um plantão em um hospital de Curitiba. O período foi difícil. Mesmo sendo recém-formada, se deparou com muitos casos graves e plantões em unidades de terapia intensiva (UTI). Depois de sete meses, naquela loucura, teve um burnout, e isso atrapalhou os planos de fazer sua residência, já que é necessário fazer um novo vestibular. “Eu não consegui prestar a prova. Prestei, mas não tinha estudado corretamente, porque eu não estava bem”, salienta.
Na mesma época, soube de um processo seletivo do Exército, e resolveu tentar. Como era em outra cidade, viu ali a chance de trocar de “ares” e tentar uma coisa nova. Ela passou e foi servir em Florianópolis (SC) por um ano.
“Depois que eu entrei, percebi que poderia fazer a residência médica com mais direitos trabalhistas. Fora isso, também percebi que tinha algumas coisas que eu queria viver antes de ser especialista. Queria atender populações vulneráveis em lugares mais distantes. Pelo Exército, você tem a oportunidade de trabalhar na Amazônia, no Norte, com populações indígenas, com populações ribeirinhas, com um respaldo, uma retaguarda maior”, explica.
Milena resolveu prestar a prova para seguir carreira no Exército, e, agora, está em Salvador (BA). Em treinamento, ela aprendeu como sobreviver na selva, como acampar e várias coisas operacionais que é preciso ter para conseguir chegar até essas populações mais vulneráveis.
Que o Enem mudou a vida da médica e dos seus, é um fato. Agora, ela deseja que mais outras tantas pessoas tenham o mesmo futuro que ela: cheio de conquistas, sonhos e novos desafios para serem superados. Feliz e realizada por já ter chegado onde está, ela deixa uma palavra de conforto para quem vai enfrentar a prova neste ano.
“Se a gente manter ali a rotina e a dedicação, a nossa hora sempre chega. Eu tive amigos que demoraram cinco ou seis anos para passar na faculdade, e, hoje em dia, eles estão formados, super felizes trabalhando na área. Então quando é para ser a hora, ela chega no lugar certo, porque para quem vem de família que não tem muito, o estudo é a melhor saída para a gente. Para conquistar tudo o que se quer, para mudar de vida, e não só a nossa, mas mudar a vida também das pessoas que estão ali, junto com a gente”, finaliza.