GERAL
Kat Torres obrigava vítima a bater meta de 15 mil dólares por dia com programas
Trabalhar por pelo menos 14 horas por dia em boates de striptease, fazer programas sexuais para tentar cumprir uma “meta” que chegou a US$ 15 mil e limpar uma casa de cinco quartos. Com todas essas tarefas, 2 horas era o tempo que restava para dormir. Essa foi a rotina de Desirrê Freitas, de 27 anos, durante os sete meses em que foi vítima do esquema de tráfico humano para prostituição nos Estados Unidos comandado por Kat Torres, coach, influenciadora, modelo e autointitulada bruxa e hipnoterapeuta brasileira que está presa há pouco mais de um ano.
Em entrevista nesta quarta-feira (6 de dezembro), a jovem conversou por mais de 1h com a reportagem de O TEMPO, para dar detalhes sobre tudo o que conta no seu livro, “@SearchingDesirrê — Minha jornada pela liberdade”, que pode ser comprado por cerca de R$ 80.
Desirrê revela que conheceu Kat aos 20 anos pela internet. Ela começou a seguir a influenciadora em 2016. Entretanto, foi somente dois anos depois, quando estava casada e morando na Alemanha, que a jovem passou a fazer as chamadas “consultas” que a coach oferecia em um site e que eram feitas pelo Skype.
“Era o meu primeiro ano na Alemanha e também o meu primeiro ano de casada. As consultas eram tanto para o âmbito profissional como amoroso, e eu a procurei por questões de relacionamento. Já na 1ª consulta, ela falou que eu tinha que me divorciar, que era uma ordem da ‘voz’. Ela me explicou que era uma voz que ela escutava e que trazia essas informações, como se fosse a voz de Deus”, detalhou a jovem, que, na época, trabalhava como consultora de imigração no país Europeu.
As consultas, que custavam entre U$ 100 e U$ 250, duravam cerca de 1h e aconteciam, inicialmente, de maneira esporádica ao longo dos anos. Porém, entre uma consulta e outra, Kat procurava a “cliente” afirmando que “a voz” teria mensagens para ela, forçando novas reuniões.
Porém, foi em 2021, após procurar diversos médicos e não conseguir curar terçóis (espécie de bolhas que aparecem nos olhos), que Desirrê acabou vivendo algo que a fez acreditar que a influenciadora tinha, de fato, algum “poder”. “Fiz uns banhos com ervas, e o problema sumiu. A partir daí, eu já tinha um contato mais próximo. As consultas passavam, às vezes, mais de uma hora do horário pago. Eu já tinha o contato dela no WhatsApp. A gente foi criando um elo”, detalha.
“Eu não entendi, na época, que ela estava me manipulando, desde o início. Ela sabia tudo que eu tinha passado, da minha vida, e foi usando todas essas vulnerabilidades, meus traumas de Infância, para ver os meus pontos fracos e conseguir me manipular. Depois de anos, ela me convenceu a me separar e me afastou de todos meus amigos”, completou Desirrê.
Os “surtos” de Kat
A partir de janeiro de 2022, ainda conforme Desirrê, Kat Torres passou a agir de formas estranhas. Entre as atitudes da modelo, estavam vídeos atacados as medidas de isolamento contra o Covid-19, postagens com fotos dela nua, falas desconexas sobre a guerra na Ucrânia e, também, pedidos de ajuda financeira.
As postagem levaram os seus seguidores a criarem um grupo para discutir formas de ajudá-la. “Enquanto tudo acontecia, eu seguia me consultando com ela, que estava totalmente normal”, lembra Desirrê.
A viagem para os EUA
Foi então que, em abril de 2022, Kat ligou para Desirrê e, desesperada, disse ter sido traída por todas as pessoas e que precisava que a jovem viajasse por um mês para ajudá-la com a nova casa para onde estava mudando.
“Eu falei que tinha acabado de ser promovida no trabalho, que não poderia, e ela falou que ia se suicidar se eu não fosse, fazendo chantagens emocionais. Ela disse que pagaria tudo, que eu ficaria na casa dela, e, em questão de horas, ela me mandou a passagem já comprada”, lembra.
Quando chegou nos Estados Unidos, Desirrê disse que, nos primeiros dias, tudo parecida normal, apesar de ter notado que a coach não levava uma vida luxuosa como ostentava nas redes sociais. “Era uma casa grande, bonita, mas não tinha móveis. A princípio fizemos coisas normais, fomos comprar coisas para a casa, ajudei a decorar, a limpar”, detalha.
Na casa estavam também outras vítimas, porém, como o processo contra Kat Torres tramita em segredo de Justiça, Desirrê e a sua advogada decidiram não citar outras pessoas que foram envolvidas no caso.
Trabalho escravo
De repente, Kat passou a dizer que não podia trabalhar, que não estaria bem e que precisaria que Desirrê fizesse isso. A princípio, a coach falava em abrir um negócio, para vender produtos exotéricos. Porém, pouco depois, a mulher começou a sugerir que a jovem atuasse em boates de striptease.
“Eu cresci num lar cristão, então, para mim, não era um caminho que eu iria. Mas ela falava que Deus não julga, que o strip seria um trabalho espiritual, que os clientes precisavam de luz e eu estaria os ajudando”, lembra.
Foi também a partir daí que Kat passou a afirmar que Desirrê estaria devendo enormes quantias de dinheiro para ela, por conta dos gastos com alimentação e as passagens compradas para sua ida aos EUA. “Ela falava que, se eu não pagasse, ela ia me amaldiçoar, e eu tinha medo, pois na casa, quando cheguei, tinha bruxarias em todos os lugares. Tinham crânios, velas”, conta a vítima.
Foi a partir daí que a modelo passou a estipular metas diárias de ganho para Desirrê. A princípio, com a jovem apenas dançando nas boates, o valor era de cerca de US$ 1 mil. Mas, com o passar do tempo, a quantia foi aumentando, chegando a absurdos US$ 15 mil.
“Tinha vezes que eu conseguia ganhar essas quantias, mas não todos os dias, pois era muito difícil. Sempre que eu não conseguia, ela falava que eu não estava me esforçando direito. Tudo que acontecia de ruim, era culpa minha. Eu não podia voltar para casa até eu ganhar o dinheiro, e assim foi ficando cada vez pior. Ela não tinha nenhuma piedade”, contou Desirrê na entrevista.
A rotina de trabalho forçado não terminava com as danças na boate e os programas sexuais. A jovem também fazia os afazeres domésticos na casa enorme e cuidava dos 11 animais da modelo. “Eu ficava dias acordada, dormia no máximo 2h. Enquanto isso, ela tinha uma vida normal, ela dormia bem, ela não trabalhava em nada. Nem ela, nem o marido. Eles viajavam, tinham uma vida maravilhosa às minhas custas”, lembrou.
O fim da “saga”
Foi somente em outubro daquele ano que o “pesadelo” de Desirrê chegou ao fim. Após a família de uma vítima mineira denunciar o caso nas redes sociais e amigos de Desirrê criarem uma página a considerando como desaparecida, Kat passou a ser investigada e teve início então uma fuga que durou até novembro, quando a influencer e duas de suas vítimas acabaram presas pela polícia norte-americana.
Desirrê conta que, somente após um mês presa no país, ela percebeu que era uma vítima e que deveria denunciar a pessoa que acreditava ser sua amiga. “Eu tenho apoio de algumas das vítimas, que apoiaram que eu escrevesse o livro. Eu entendo que não é fácil denunciar, é muito difícil, é muito pessoal”, completa a vítima.
Ataques nas redes
Desde sua volta ao Brasil, Desirrê constantemente sofre ataques nas redes sociais. “Até hoje eu sou atacada, pessoas que não acreditam em mim. As pessoas não entendem, mas eu ainda estou lidando com o trauma. As pessoas não têm a menor sensibilidade. Eu sei que quando se torna uma pessoa pública não vão ter só pessoas te defendendo, te apoiando. Por isso, eu foco realmente em alertar para que as pessoas não sejam vítimas como eu, pois, se eu fosse fazer só por mim, eu não teria escrito esse livro”, destaca.
Para superar tudo o que viveu, a jovem vem recebendo atendimento psicológico com o apoio da Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude (Asbrad). A entidade, é a mesma que receberá uma parcela dos lucros da venda do livro.
Kat é capaz de responder pelos crimes, diz laudo
No episódio final do podcast “A Coach”, Chico Felitti afirma que foram feitos dois laudos psiquiátricos de Kat Torres após a prisão dela. Segundo ele, a lista de diagnósticos e os psiquiatras apontaram que viram nela: alterações deliróides de conteúdo grandioso e místico, humor maníaco, juízo crítico comprometido e alucinações auditivas.
Ainda de acordo com Felitti, que acompanhou de perto o processo judicial contra Kat Torres, o laudo final dos peritos judiciais é de que a ré é totalmente capaz de entender o caráter ilícito de suas ações.
Thaís Resende, do escritório KTM Advocacia, representa Desirrê ao lado da também advogada Karin Toscano. A defensora explica que Kat Torres responde na Justiça por tráfico humano, com o foco na exploração sexual, e, também, por manter pessoas em situação análoga à escravidão.
“Ela se utilizou da fraude, em que vai acontecendo a manipulação e consequentemente, uma anuência viciada, separando a pessoa dos seus laços básicos, até que o agressor se torna a única pessoa na vida daquela vítima. Então, a partir daí, começa a exercer um controle total da pessoa, você anula de tal forma que ela se torna completamente dependente”, pontuou a advogada.
Ainda conforme Thaís, isso faz com que os crimes de tráfico humano, como o de Desirrê, tenham uma “baixa notificação”. “As pessoas se perguntam como provar isso, principalmente em um caso como este, em que ela não foi sequestrada, mas sim manipulada mediante fraude para fazer tudo o que fez”, finaliza a defensora.