GERAL
MEC nega repasses a escolas especiais, mas verba continua existindo com pouca transparência
No papel, a legislação brasileira é explícita ao assegurar o direito a um sistema educacional inclusivo para todas as pessoas. Na prática, porém, instituições com salas especiais, que segregam estudantes com deficiência, continuam existindo. Em entrevista exclusiva ao Terra, o representante do Ministério da Educação (MEC) Décio Guimarães afirmou que “não existe política que leve recursos para escola exclusiva”. Mas, apesar de imprecisos, os dados vão em outra direção.
Guimarães é diretor de Políticas de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) e defende a extinção das chamadas escolas especiais.
“Nós quadruplicamos o quantitativo de pessoas públicas da educação exclusiva no contexto da escola regular. E reduziu, assim, absurdamente. […] Uma coisa que é inegociável é a presença das pessoas públicas da educação especial no contexto da escola regular. É o princípio da não discriminação”, afirmou.
Segundo dados do Censo Escolar de 2022, há 1,5 milhão de estudantes na modalidade de Educação Especial – que tem como público alvo alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e superdotação ou altas habilidades. Desse grupo, cerca de 144 mil estão em classes especiais – que vão na contramão das diretrizes da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, vigente desde 2008, e reforçada pela promulgação da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI), de 2015.
Força da Apae
Dentre estes alunos de classes segregadas, 66% se concentram em filiais da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) – cruzando os dados gerais do Censo Escolar com os detalhados da Federação Nacional das Apaes (Fenapaes), obtidos pelo Terra. Apenas a Apae reúne cerca de 101 mil matrículas espalhadas em 1.298 escolas especializadas da instituição.
Questionada sobre orçamento, a própria federação afirmou que, para a educação, embora não de maneira geral, há unidades com salas especiais que recebem recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) – tudo vinculado ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), do MEC.
A Fenapaes, no entanto, não afirmou o quanto recebeu de cada um desses programas nos últimos 10 anos. O Terra tentou o detalhamento do orçamento com o FNDE, mas não obteve retorno até a publicação desta matéria.
No regional
Sem números por parte do FNDE e da Apae nacional, a reportagem solicitou a todas as secretarias estaduais de Educação dados sobre as verbas públicas direcionadas a salas especiais. Apenas nove estados responderam e, destes, Paraná e Rio Grande do Sul confirmaram a existência de Apaes que funcionam como escolas especiais exclusivas e detalharam os repasses que receberam.
Destes, apenas dois, Paraná e Rio Grande do Sul, confirmaram a existência de Apaes que funcionam como escolas especiais exclusivas e detalharam os repasses que receberam:
• O.Paraná disse contar com 400 instituições da Apae, entre elas Escolas Especiais, Ceducs e escolas voltadas apenas para cegos ou surdos. O Estado afirmou ter firmado um termo de colaboração com a Apae, em que fornece verba de R$ 480 milhões para a organização. Não discriminou, porém, quanto desse valor vai para cada modalidade.
• O Rio Grande do Sul afirmou ter 205 Apaes em atuação no Estado, sendo que 140 delas em parceria com a secretaria de Educação e que recebem R$ 31,1 mi do Fundeb.
Uma das unidades visitadas pela reportagem, a Apae de São Caetano do Sul, de São Paulo, inclusive, afirmou não receber mais direcionamento de novos alunos para a escola especial desde a promulgação da LBI. Porém, alegou que verba federal pelos alunos antigos continua ativa.
Falta de transparência
Em apuração sobre este orçamento, o Terra esbarrou na falta de transparência. A reportagem chegou a encontrar repasses feitos a escolas especiais por meio de plataformas como o Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Educação (Siope) e o Sistema de Controle de Materiais Didáticos (Simad) do FNDE. Porém, os mecanismos de pesquisa não possibilitaram um mapeamento a nível nacional.
Isso porque em alguns casos, por exemplo, é preciso selecionar o ano, o programa de investimento específico, o estado, município e o tipo de entidade – tendo como opções empresa, escola particular do censo, escola pública do censo, organização não governamental, órgão estadual, prefeitura ou secretaria estadual de educação. Só após selecionar todos estes pormenores, é possível ter acesso à listagem dos valores, um a um.
Mesmo sem chegar a um montante, por conta dos entraves, a reportagem encontrou repasses a entidades com salas especiais principalmente por meio do PDDE de Educação Especial, confirmando a indicação da Federação das Apaes.
Ao tentar acessar relatórios de demonstrativos de despesas municipais ou estaduais relacionadas ao FNDE, o Terra também não encontrou transparência sobre o quanto da verba é direcionada à Educação Especial nem, especificamente, quanto é direcionado a instituições especializadas.
Marcia Maurilio Souza, pesquisadora da Rede de Pesquisadores sobre Financiamento da Educação Especial (Rede Fineesp), explica que as despesas em torno da Educação Especial costumam ser agregadas às subfunções –categorias que compõem o orçamento– do Ensino Fundamental e do Ensino Médio.
Assim, na prática, fica mais difícil identificar o que é repassado em parcerias para Organizações da Sociedade Civil (OSCs) – como a Apae -, para Salas de Recursos Multifuncionais, para profissionais do Atendimento Educacional Especializado (AEE) e assim por diante.
Nem na Lei orçamentária
Os dados também são pouco claros nos registros de Lei Orçamentária Anual (LOA). O Terra apurou os documentos de 2013 a 2023 e não encontrou nenhum descritivo de verba direcionada para a Educação Especial para além de dois institutos federais: o Instituto Nacional de Educação de Surdos e o Instituto Benjamin Constant (IBC), ambos tradicionais no Rio de Janeiro. Há também menções à Escola de Ensino Especial Dom Bosco, do município de Rio Branco, no Acre.
Além disso, outros pontos de destaque:
• Apesar de Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva de 2008 e da Lei Brasileira de Inclusão de 2015, o termo ‘Educação Especial’ apareceu pela primeira vez nos documentos de Lei Orçamentária Anual apenas em 2019, com zero reais direcionados e empenhados. O mesmo acontece em 2020.
• Em 2021, foi direcionado R$ 17,8 milhões para a Educação Especial, em meio ao orçamento do MEC. Porém, o valor fica em R$ 0 se excluído o que foi direcionado ao Benjamin Constant e ao Instituto Nacional de Educação de Surdos. Juntas, as duas instituições receberam mais de R$ 121,1 milhões.
• Em 2022, a mesma coisa aconteceu com os R$ 42,5 milhões voltados para a Educação Especial. No ano, as mesmas duas instituições receberam, juntas, mais de R$ 198,5 milhões além do valor do setor.
• Pelo terceiro ano consecutivo, o mesmo aconteceu. A verba para a Educação Especial diminuiu um pouco, R$ 41,7 milhões. Mas, dessa vez, esse foi o valor total direcionado para as duas instituições consagradas.
*Para ver a versão desse vídeo com audiodecrição, clique aqui.
* Essa é a primeira matéria da série especial Educar para Incluir, que faz uma imersão na educação inclusiva no Brasil a partir da história de alunos com deficiência ou com superdotação — afetados, todos os dias, pelos êxitos ou falhas de governos e redes escolares. Acesse aqui.
Reportagem: Beatriz Araujo, Maria Clara Andrade e Marcela Coelho
•Edição de vídeo: Luis Nascimento
•Revisão: Estela Reis
•Supervisão: Larissa Leiros Baroni
•Tradutora de Libras: Jéssica Nascimento Moura