GERAL
“Rio ainda é fonte de diversão”: como celular impacta a infância em comunidades indígenas

Em tempos de discussão sobre a crise climática no Brasil, especialmente com a proximidade da COP 30, o menor Estado do país, Sergipe, busca a preservação da Caatinga, bioma exclusivamente nordestino, bem como dos territórios originários que o compõem. E é neste cenário árido e sertanejo, que as aldeias indígenas Xokó e Kariri-Xocó lutam não somente contra os avanços da devastação territorial, como também buscam meios de preservar a infância indígena próxima aos recursos naturais ameaçados pelo avanço do agro, da especulação imobiliária e do uso desenfreado das tecnologias.
Em meio às águas sagradas do Rio São Francisco, uma lembrança viva pulsa entre as suas margens: a infância indígena dos povos Xokó e Kariri-Xocó. É naquele cenário de natureza e ancestralidade latente, que a liderança indígena Dany Xokó, ou Danielly Silva dos Santos Lima, relembra os dias livres da sua infância. “A gente tomava banho, pescava e brincava. O Rio era o nosso ponto principal de diversão. Brincar não era se sujar com terra. Era se cobrir de vida”. E é nesse chão que, para as crianças indígenas de Sergipe, é terra viva, é memória e é futuro.
De acordo com o Panorama da Primeira Infância: O que o Brasil sabe, vive e pensa sobre os primeiros seis anos de vida (2025), pesquisa realizada pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, a primeira infância compreende a fase de 0 a 6 anos, fase de maior desenvolvimento humano. Segundo estudos e evidências científicas, as consequências da maneira como as crianças se desenvolvem neste período, a partir do contexto em que habitam e a forma como o meio, influenciam até a sua fase adulta.
O documento destaca alguns dados sobre práticas e interações que influenciam diretamente o modo como a criança irá desenvolver suas habilidades cognitivas, físicas e emocionais. Dentre os aspectos apontados no Panorama, o ato de brincar foi citado em todas as entrevistas realizadas, como fundamental para o desenvolvimento infantil, pois influencia diretamente na aprendizagem, na socialização, na interação, na criatividade e nas emoções.
Além disso, não somente este documento, como outros, inclusive o Crianças, adolescentes e telas: Guia sobre usos de dispositivos digitais, que surgiu como uma resposta à sociedade brasileira para a construção de um ambiente digital mais saudável para as crianças e adolescentes do País, uma vez que o uso excessivo das telas e o aumento da presença de crianças no ambiente digital tem gerado uma preocupação entre especialistas sobre segurança e desenvolvimento infantil, trazem reflexões importantes acerca dos modos de brincar relacionados a uma infância salutar e inclusiva.
O Brincar do Passado
Entre o asfalto e os caminhos de terra pela Caatinga sergipana, a aldeia Xokó se relaciona com o brincar e a infância a partir de sua integração com o território e o que ele oferece. Para Yanara Apolônio, professora da cultura Xokó, é possível recordar com nitidez as memórias da infância marcada por cada estação: “No verão, a gente brincava de queimada e pimbarra; no inverno, o macacão. A gente vivia na rua, só ia para casa para comer ou dormir”. Ela conta que o brincar era sinônimo de vínculo, de comunidade, de liberdade.
As telas são algo recente para nós, não existia isso aqui e mesmo a televisão, era algo que se fazia de maneira coletiva, todo mundo assistindo junto, comentando, e também não era algo que as crianças ficavam muito. Quando criança, a gente gostava mesmo era de estar na rua, no rio, brincando, correndo, conversando, cantando, dançando” — Yanara
Assim como Dany Xokó, Yanara observa uma mudança importante nos tempos atuais: “Hoje, muitas crianças não conhecem as brincadeiras que vivemos. O celular tomou espaço. Mas, quando resgatamos essas atividades na escola, vemos a empolgação voltar. Eles querem brincar, só precisam de espaço e incentivo”.
Do outro lado do Rio São Francisco, no Estado de Alagoas, a aldeia Kariri-Xocó, que tem uma relação próxima com Sergipe, carrega uma infância indígena semelhante aos parentes Xokó. “Na minha infância eu não tive celular, nem eu e nem meus amigos. No meu ponto de vista, eu vejo que eu corria, eu brincava de esconde-esconde, pegava os cacos de coco, botava cordas e fingíamos que eram cascos de cavalos e apostávamos corrida, a gente pulava nas árvores, de galho em galho, até meus 13, 14 anos eu soube aproveitar. Não tive a tecnologia para atrapalhar. Eu não tive acesso à tecnologia até essa idade”, afirmou Neto Kariri-Xocó.
Para ele, a criança tem o direito de brincar, e é por isso que ele desenvolve projetos dentro da aldeia como torneios de futebol, grupo de quadrilha junina, gincanas no período da semana da criança (entre 06 e 12 de outubro), como forma de tentar resgatar a importância da brincadeira na infância indígena. “O uso da tecnologia é bom, mas tem que ter cuidado, pois, aqui na aldeia, por exemplo, tem muita criança que nem estudando está por conta disso, do celular. Chega dói sabe, mas vou falar sobre a realidade de nossa comunidade. Eu queria poder fazer mais projetos, mais torneios, para que eles desenvolvam atividades artísticas, botar os mais velhos para contar as histórias de nossa cultura, e para que, aqueles que se forem, ter a juventude para lembrar a história dos que passaram”, afirmou.
O Brincar do Presente
Apesar das mudanças trazidas pela eletricidade, pela internet e pelas redes sociais, o brincar, sobretudo ao ar livre e em contato com a natureza, faz parte desta cultura de resistência. “As crianças ainda têm o Rio como fonte de diversão. Elas brincam, correm, dançam Toré e aprendem sobre o Ouricuri”, afirma Dany Xokó. O Ouricuri é um ritual sagrado, uma escola viva da ancestralidade. O cacique Bá, liderança do povo Xocó, reforça a importância de resgatar essas vivências no presente.
“O brincar é parte do ensinamento, da cultura, da formação da identidade da criança indígena” –Dany Xokó
Para Isabelly Xokó, adolescente indígena e autora de algumas fotos desta matéria, a tecnologia é uma aliada, mas não pode ser o único recurso para a primeira infância. “Eu tive acesso ao celular recentemente, hoje em dia, as crianças praticamente já nascem com esse acesso, e aqui na aldeia eu percebo que elas usam o celular, mas brincam também na rua e na escola. Eu acho que a gente vive num paraíso, mas nem toda criança tem esse acesso livre à natureza”.
Maya, de 6 anos, uma das crianças da comunidade, se animou ao falar sobre suas brincadeiras preferidas: “Eu gosto de esconde-esconde, de pega-pega, e também de desenhar”. E não, o celular não foi a primeira resposta. Isso diz muito. Sua irmã Ester, de 4 anos, ainda complementa: “Eu gosto de pedra, papel, tesoura, tia”. A infância indígena ainda preserva um outro tempo, um ritmo ancestral que pulsa na terra, nos cantos e nas danças.
As profissionais sergipanas Michelle Souza, psicóloga, e Vanessa Nascimento, pediatra e especialista em psiquiatria infantil, são unânimes: o brincar é um fator essencial para o desenvolvimento infantil — motor, cognitivo, emocional e social.
Para Michelle, o brincar ao ar livre é insubstituível. “O contato com a natureza estimula o cérebro, desenvolve a inteligência e regula as emoções da criança”. Ela alerta ainda sobre os riscos do excesso de telas: atraso na fala, prejuízos na socialização, distúrbios de sono e até dependência digital.
Porém, para a profissional, apesar das consequências negativas do uso excessivo de telas, há métodos que podem auxiliar a sanar os danos. “O brincar é uma forma de expressão emocional, portanto, há um conceito e método chamado ludoterapia, por exemplo, que mostra que, através da brincadeira, a criança pode processar frustrações, medos e inseguranças, ou seja, é uma oportunidade dada a criança de se libertar de seus sentimentos e problemas através de brinquedos de modo semelhante a certas formas de terapia para adultos, onde o indivíduo resolve suas dificuldades falando”, explica Michelle.
A pediatra Vanessa Nascimento complementa: “Na tela, a criança não precisa ceder, ouvir, compartilhar. No brincar coletivo, ela aprende tudo isso. Aprende a ser gente. Atualmente, se a gente pega uma criança com uso excessivo de telas, já afirmam que há suspeita de autismo, por exemplo, por um atraso de fala, por uma dificuldade na interação social, e a primeira coisa que a gente pede é para tirar o excesso de telas. Eu já percebi em um paciente, por exemplo, que, ao retirar as telas, ele teve uma evolução considerável em dois meses. Ele passou a falar frases, interagir, brincar, coisa que antes ele não fazia. Por que? Porque ele ficava só no celular”, disse.
As profissionais Michelle Souza e Vanessa Nascimento reforçam: é possível equilibrar o mundo digital com o mundo real, mas é preciso ter consciência. A brincadeira, principalmente na primeira infância, é uma linguagem vital. Sem ela, a criança não se desenvolve plenamente. Além disso, o papel das e dos cuidadores é fundamental no processo de interação e sociabilidade das crianças, sobretudo nesta primeira fase, estimulando de maneira direta o desenvolvimento infantil.
O Futuro é Ancestral?
Diante de tantos desafios modernos, parafraseando a célebre frase do ambientalista e filósofo indígena brasileiro, Ailton Krenak, fica a pergunta: o futuro do brincar pode (e deve) ser ancestral? Yanara Apolônio finaliza a entrevista acreditando que sim.
“Quando as crianças dançam o Toré, elas não estão só brincando, estão reafirmando quem são. Isso é futuro com raiz”, pontua.
As filhas de Yanara, Maya e Ester, ao correr atrás de um amigo num pega-pega ou ao desenhar suas bonecas, estão também desenhando pontes entre o passado e o porvir. Para o cacique Bá, não há dúvida:
“Brincar é viver em harmonia com o território. Se o território for respeitado, a infância também será” — cacique Bá
Seja na aldeia Xokó, ou na Kariri-Xocó, a infância ainda encontra esse chão de vida: no Rio São Francisco, nas rodas de Toré, no cheiro da mata, nas árvores, nas histórias contadas à noite pelos mais velhos. Brincar, para essas crianças, é uma forma de existir no mundo. E talvez seja essa uma das grandes lições que precisamos aprender — ou reaprender — com os povos indígenas de Sergipe: que a infância não é só uma fase da vida. É o chão que sustentará todos os nossos passos futuros.
*Díjna Torres é jornalista sergipana, doutora em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mestra em Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), especialista em educação, religiosidades e cultura afro-brasileiras e estudos de gênero. É autora do livro Mulher Nagô: liderança e parentesco no universo afro-brasileiro, e pesquisadora. Repórter colaboradora da Mangue Jornalismo e do MST Sergipe, já atuou nas áreas de assessoria de imprensa, produção, roteiro, movimentos sociais e políticas públicas. Atualmente integra também a Rede Internacional de Jornalistas pela Primeira Infância.





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