GERAL
‘Tudo descontrolado’: a dor dos ribeirinhos que foram do extremo das enchentes à seca histórica

Em março de 2024, os pingos de chuva que pareciam um pequeno respiro em meio ao calorão de mais de 30ºC ganharam força e, em poucas horas, transformaram o Acre em um grande rio. As ruas foram tomadas pelas águas do Rio Acre, que invadiram muitas casas sem pedir permissão e causando estragos sem precedentes. Muitas famílias perderam em questão de minutos tudo o que construíram durante a vida inteira. Algumas outras tiveram até que enfrentar o luto diante da imensurável dor de perder alguém próximo. E, poucos meses depois, quando tudo parecia estar ‘voltando ao normal’, uma nova tragédia: a seca.
- Essa reportagem faz parte da série Retratos da Ebulição, que conta histórias de brasileiros que tiveram suas vidas devastadas por eventos climáticos extremos –incêndios florestais, secas, chuvas e terremotos– impulsionados pelo aquecimento global.
O que antes era apenas uma variação comum do clima, ganhou força, impactando diretamente milhares de pessoas. Em setembro de 2024, a seca acreana veio acompanhada de um alto nível de poluição do ar e das queimadas. Na época, eu estava no Estado para visitar minha família, mas me deparei com algo que, em 27 anos, nunca havia sentido de maneira tão intensa. Com os olhos ardendo e com dificuldade para respirar, vi minha casa inalar fumaça durante vários dias. E a tosse virou a trilha sonora mais ouvida.
Foi naquele mesmo período que o Rio Acre atingiu a sua menor cota da história: 1,23 metro. Cerca de 12 mil produtores rurais foram afetados pela seca nos 22 municípios do Estado. Se na capital Rio Branco, a população sofreu com a falta de água e com a poluição do ar, as dificuldades para os ribeirinhos foram muito além.
Rios intrafegáveis, peixes mortos e ar poluído
No vai e vem das águas dos rios barrentos da Amazônia, quem mora às margens do Rio Macauã, em Sena Madureira (AC), consegue perceber que, com o passar dos anos, o verão e o inverno amazônico têm se intensificado, como pontua o produtor rural Sebastião Moraes, de 45 anos, que relembra com bastante tristeza no olhar a seca de 2024.
Com os rios vazios, ele se viu impossibilitado de ir ao centro da cidade buscar alimentos para sua família, já que mora em uma zona rural, só acessada via barco. “Não tem como vir por água. É tão seco que o rio fica apartado. O cara atravessa de sandália, que nem molha. Este mês, o rio já está seco, então acho que este ano vai ser pior”, aponta.
O medo da fome tomou conta de Sebastião, que não pode recorrer nem à pesca. O calor intenso matou os peixes com choque térmico. Nem o gado –usado pelos produtores rurais para subsistência– foi poupado.
“O gado ficou com fome por conta da falta de pasto. Acredito que tenha sido o desmatamento. É demais, toda vez o rio fica cada vez mais seco. Não pode desmatar porque cada árvore dessa, é um fruto”, descreve ele, que acrescenta também a escassez de águas para beber.
Sena Madureira foi a segunda cidade brasileira mais poluída em 2024, perdendo apenas para Porto Velho (RO). No mesmo ranking das 10 cidades brasileiras com a pior qualidade do ar, estão outros seis municípios do Estado: Rio Branco, Xapuri, Manoel Urbano e Santa Rosa do Purus. Os dados são da empresa suíça IQAir, que divulga, anualmente, o Relatório Mundial sobre a Qualidade do Ar.
‘Chove demais ou faz sol demais’
Pedro Nascimento, de 57 anos, já não sabe mais o que fazer. Em março de 2024, ele perdeu todas as plantações por causa das inundações. A força das águas, atrelada à chuva intensa, prejudicou os alimentos de cada dia do agricultor.
“Perdi milho, macaxeira, melancia. Eu tenho anotado as mudanças climáticas desde 2001 e, a cada ano que passa, vem se intensificando. As perdas vêm ficando maiores a cada ano. O que plantamos depois da alagação foi perdido durante a seca”, diz.
Nascimento mora na estrada do Quixadá, no Ramal do Oriente, às margens do Rio Acre. A região, que pertence à capital acreana, Rio Branco, foi palco para a minissérie Amazônia, de Galvez a Chico Mendes (2007), da Rede Globo.
“Se não houver mudança de comportamento em relação à natureza, as expectativas para os próximos anos não são boas, pelo menos do meu ponto de vista. Estou iniciando uma safra de melancia, mas estou percebendo que está tudo descontrolado: ou chove demais ou faz sol demais” — Pedro Nascimento
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A presença de pragas nas plantações também tem se tornado cada vez mais comum. “Parte da nossa alimentação a gente tirava da pesca no rio. Hoje, para pegar um peixe é a coisa mais difícil do mundo. Essa mortalidade de peixes foi coisa de louca, a gente via muitos boiando no rio. Até mesmo os botos”, conta.
Aumento da temperatura na Amazônia
Segundo Foster Brown, professor e pesquisador da Universidade Federal do Acre (UFAC), a temperatura anual da Amazônia tem subido na média de 1,5 graus celsius desde 1970, sendo o “fator dominante o aumento na concentração de gases de efeito estufa, principalmente o gas carbônico que vem da queima de carvão mineral, petróleo, gas natural e de desmatamento”.
O pesquisador explica que o clima muda naturalmente, mas que a interferência da humanidade tem trazido um descontrole nestas alterações. “O que a humanidade está fazendo é mudar a concentração de gases que seguram o calor, aumentando a temperatura do ar e convertendo a vegetação de floresta a pasto, que afeta a transferência de calor via transpiração. Em outras palavras, estamos alterando os processos que controlam o clima.”
Para Danilo Moura, especialista em clima e meio ambiente da Unicef Brasil, as mudanças climáticas trazem o aumento da temperatura, que está diretamente relacionado às queimadas e as enchentes, por exemplo. “Uma série de eventos extremos vão ficando cada vez mais comuns. Você tem um desequilíbrio, como calor intenso, por períodos mais longos”, explica.
E, nos Estados do Norte, como cita Greyce Lousana, presidente-executiva da SBPPC, é comum que a população de cidades do interior fique mais próxima aos rios e, desta forma, as mudanças climáticas têm um impacto ainda mais significativo nesta região.
“Se você tem muita seca, se você tem muita enchente, as variações climáticas elas provocam período de seca mais intensos e período de chuvas mais intensos, ou seja, para estas populações, ou elas vão ficar sem água para consumir ou elas não terão condição de viver porque as regiões vão ficar alagadas. E evidentemente que o ecossistema dessas regiões, o alimento que elas trazem, inclusive destes rios, vai acabar sofrendo uma grande variação”, conta.
Dados da Climate Watch apontam que pessoas com renda per capita abaixo da média são as mais afetadas pelos riscos climáticos, principalmente no que se refere à elevação do nível do mar, o aumento da temperatura e a irregularidade das chuvas. “Como estas pessoas estão mais expostas e sensíveis a esses impactos e, geralmente, possuem menos recursos para se adaptarem, elas se tornam mais vulneráveis às mudanças climáticas”, informa a plataforma.
Em nota ao Terra, a Secretaria de Agricultura do Estado do Acre informou que existe um comitê permanente para monitorar a possibilidade de uma nova seca este ano, que deve ser ainda mais prolongada.
“Foram elaborados planos de contingência e protocolos de ação rápida, que incluem o monitoramento constante das condições climáticas e a disponibilização de recursos para assistência imediata aos produtores afetados. Neste ano, a previsão é de que a seca seja ainda mais prolongada, mas já estamos prontos para mitigar os efeitos e garantir alternativas para os produtores”, disse.
