GERAL
‘Vai denunciar quem consegue seu endereço?’, diz policial sobre silêncio na PC
Em um cenário em que o adoecimento de policiais deixa de ser oculto na Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG), uma nova denúncia começa a crescer entre os servidores: a repressão daqueles que ousam se manifestar. “Se denunciar, você se queima. E digo mais, você vai denunciar alguém que consegue o endereço da sua casa?”, desabafa um investigador com oito anos de carreira na Polícia Civil, que preferiu não ser identificado. Humilhações, trocas forçadas de delegacias e processos administrativos foram citados como formas de silenciamento por fontes ouvidas pela reportagem.
Em um dos casos, outro policial civil, também não identificado para preservar sua segurança, contou que, após apresentar diagnóstico de problemas de saúde mental, passou a ser perseguido. Hoje, o policial mede as palavras dentro da corporação e agendas públicas, por medo de ser cada vez mais punido. “Estão me vigiando de todas as maneiras. Silenciam muita gente assim”, lamenta.
Primeiro, o servidor foi transferido da delegacia que atuava para outra a 185 km de distância. Depois, começaram os processos. “Assim que passei a denunciar e pedir providências sobre o assédio que sofri, começaram a ‘queimar meu filme’ e me removeram. Eles tentam alegar que você quer expor a instituição, mas não é isso. Queremos ser ouvidos porque estamos sofrendo, mas sempre dão um jeito de definir como se quiséssemos expor e difamar”, denuncia. “Até por situações fora da delegacia já me processaram”, lamenta.
O diretor jurídico do Sindicato dos Escrivães de Polícia de Minas Gerais (Sindep/MG), Marcelo Horta, confirma que a retaliação é o mais comum após uma reclamação, pedido de esclarecimento ou denúncia formal dentro das delegacias. “Quando os servidores começam a denunciar, são vistos como se estivessem expondo a instituição. Essas pessoas, que denunciam, estão sendo processadas, estão passando por sindicâncias, punições administrativas pela Corregedoria da Polícia Civil. Ao invés do assediador ser punido, a vítima sai com a pior”, conta.
A exposição do problema está presente em casos que provocaram a comoção pública envolvendo a PCMG. Um deles é o da escrivã Rafaela Drumond, de 32, que, antes de tirar a própria vida, enviou áudios e vídeos denunciando assédio moral e sexual dentro da instituição. A profissional chegou a deixar registrado que um delegado foi comunicado dos fatos, mas não tomou providências.
Esta semana, a delegada Monah Zein, que passou mais de 30h em negociação com a Polícia Civil dentro de sua casa na Pampulha, comentou em live sobre se sentir perseguida. “Eles tiraram minha saúde, vocês não têm ideia do que fizeram. Foi torpe, foi vil”, disse em uma das transmissões. A versão foi bancada pela sua equipe de advogados.
“Isso é muito comum no âmbito policial. O policial não pode questionar. Você vai questionar um problema, e escuta que vai ser removido, que vão instaurar uma sindicância”, reforça o presidente do Sindicato dos Servidores da Polícia Civil do Estado de Minas Gerais (Sindpol/MG), Wemerson Oliveira.
Hierarquia e diferença nos tratamentos incide na saúde mental dos servidores
Ao descrever o interior de uma delegacia, o investigador usou a expressão “inferno de Sartre”, que quer dizer que o inferno são os outros. “É jogo de poder. Todo mundo quer crescer, quer ser promovido, mas não tem critério nenhum. Às vezes, para o policial conseguir alguma coisa, ele vai ter que jogar o jogo. Ele vai fazer a vontade de quem consegue essa promoção para ele. Isso adoece. E, na corregedoria, se você é um ‘tira’, recebe uma medida, se é delegado, é outra”, denuncia o policial.
Essa disputa interna, segundo o especialista em segurança pública e professor da PUC Minas, Luis Flávio Sapori, está adoecendo os agentes e reflete em uma cultura de assédio na instituição. “Existe uma competição interna muito grande, um nível de assédio moral e sexual, muito elevado também. E tudo isso, enfrentando um estigma grande na sociedade brasileira. Esses fatores todos, sem dúvida, afetam a saúde psíquica do policial”, garantiu.
De fato, a psicanalista Bruna Rafaele avalia que os casos de assédio dentro de instituições estão mais ligados à corporação que a posições individuais. “O assédio vem de um coletivo que apoia o assediador, que o torna cúmplice”, diz. A consequência de uma denúncia mal resolvida pesa, principalmente, na saúde da própria vítima.
“Fica uma situação complicada, porque assédio é um tipo de violência. E isso só prejudica qualquer profissional. A pessoa chega a um extremo de violência em que, ou ela encontra um caminho em um grupo de apoio, em um acolhimento profissional, ou perde a capacidade de imaginar uma saída”, continua.
Mas procurar ajuda também é um desafio na PCMG. No Hospital da Polícia Civil (HPC), 11 psicólogos e três psiquiatras precisam dar conta das demandas de mais de 11 mil servidores — além de aposentados e dependentes – em todo o Estado. “Todos que lidam com as mazelas sociais, como os policiais, precisam passar por um amparo na área de saúde mental para entender e colocar limite na violência, para não continuar o ciclo da violência, não perpetuá-la”, explica a especialista.
O que diz a PCMG?
“A Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG) afirma que eventuais denúncias sobre prática de atos que constituam assédio são imediatamente investigadas pela Corregedoria-Geral da Polícia Civil, por meio de procedimentos disciplinares e criminais. Há, inclusive, uma comissão que atua, especificamente, nas denúncias de assédio moral.
A Polícia Civil ressalta que não compactua com qualquer desvio de conduta de seus servidores e assegura que todas as transgressões administrativas são apuradas com total independência nos trabalhos correcionais.”
“A Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG) inaugurou oficialmente, no dia 10/11, a sede do Centro Biopsicossocial. A unidade, que integra a estrutura do Hospital da Polícia Civil (HPC), está sediada na Avenida Barbacena, 473, bairro Santo Agostinho, região Centro-Sul de Belo Horizonte, e reúne serviços de atenção integral à saúde, voltados ao bem-estar físico, mental e social dos servidores e de seus dependentes.
Cumpre salientar que, a PCMG realizou, durante o ano, campanhas como o Janeiro Branco e o Setembro Amarelo desenvolvidas com especial enfoque na prevenção ao suicídio e à promoção de condições psicológicas mais saudáveis a todos os servidores.
Também por meio do Hospital da Polícia Civil, a instituição presta atendimento psicológico clínico, em sessões presenciais e também por teleconsulta, para servidores da ativa, aposentados e dependentes, da capital e do interior. A unidade dispõe, ainda, de plantão psicológico, com escuta especializada, sem necessidade de agendamento. Os interessados podem entrar em contato pelo WhatsApp (31) 99807-9670.
A PCMG acompanha de perto os dados sobre saúde mental e eventuais casos de suicídio e outros crimes violentos registrados por meio da Diretoria de Saúde Ocupacional. Contudo, dados estatísticos sobre o tema não são objeto de divulgação, com o intuito de preservar a família das vítimas, garantir o direito à privacidade, evitar alarmismos e análises descontextualizadas sobre casos individuais que possuem motivações multifatoriais.”