MUNDO
A história sinistra por trás da foto da ‘montanha de crânios de bisão’
Dois homens de terno preto e chapéu-coco posam junto a uma montanha de crânios de bisão, desafiando a gravidade.
A imagem perturbadora é do século 19. Milhares e milhares de crânios, em pilhas bem arrumadas, apontam em direção ao céu.
Mas, por trás da primeira e macabra impressão, a foto esconde um segredo ainda mais sombrio. Os crânios não são apenas consequência do excesso de entusiasmo pela caça nos Estados Unidos. E os dois homens não são nem mesmo caçadores.
Especialistas afirmam que os crânios são a prova de uma campanha cuidadosamente calculada e organizada para erradicar o bisão na América do Norte. A intenção era privar os povos originários de um recurso fundamental e levar as poucas comunidades sobreviventes para pequenas reservas, onde poderiam ser controladas pelos colonizadores brancos recém-chegados.
“Esta imagem é um exemplo da celebração colonial da destruição”, afirma a cineasta Tasha Hubbard, do povo nativo americano Cri. Ela é professora da Faculdade de Estudos Nativos da Universidade de Alberta, no Canadá.
Hubbard descreve o extermínio do bisão como parte “estratégica” da expansão colonial. A erradicação do animal “era vista como a conquista do Oeste, a subjugação daquele espaço selvagem, necessária para expandir a colonização”.
O abate em massa do bisão na era colonial foi um golpe permanente para as tribos que dependiam do animal para seu sustento.
Ele prejudicou a evolução das nações dependentes do bisão, de forma mensurável e duradoura, em comparação com aquelas que não dependiam do animal. Elas registravam, por exemplo, mortalidade infantil superior às outras nações, segundo um estudo comparativo.
O estudo concluiu que a perda do bisão lançou as nações dependentes do animal em uma trajetória fundamentalmente diferente, que persiste até os dias de hoje.
Os povos originários americanos caçaram bisões por séculos.
Para aquelas nações, o animal fazia parte da sua cultura basicamente nômade. O bisão fornecia um sustento vital – carne para a alimentação, peles para abrigos e roupas e ossos para ferramentas.
Na cultura popular e em fontes históricas, o bisão costuma ser chamado de búfalo, como indicavam os primeiros colonizadores. Mas, na verdade, trata-se de dois animais diferentes.
Os povos originários em toda a América do Norte dependiam do animal, segundo Hubbard. “Por isso, retirar aquela espécie fundamental possibilitou usar a fome como arma contra os povos indígenas, nos enfraquecendo para nos controlar e nos retirar dos nossos territórios.”
Apesar da utilidade do bisão, estimativas indicam que os caçadores nativos americanos abatiam menos de 100 mil animais por ano. Esta quantidade fazia muito pouca diferença para a população de animais no início do século 19, que era de 30 a 60 milhões de bisões.
Mas, em 1º de janeiro de 1889, havia apenas 456 bisões puro-sangue nos Estados Unidos. E 256 deles viviam em cativeiro, protegidos no Parque Nacional de Yellowstone e alguns outros santuários da vida selvagem.
‘Desejo de riqueza e poder’
Existem diversos motivos para o abate em massa dos bisões. Um deles foi a construção de três ferrovias que atravessam as áreas com maior população de bisões. A obra aumentou a demanda pela carne e pelo couro dos animais.
Paralelamente, as espingardas modernas facilitaram o abate do bisão. E também não existiam medidas de proteção para restringir a caça.
Mas havia uma razão mais sinistra e específica para o declínio dos animais, do que o simples aumento da demanda pelos produtos de bisão. E a própria necessidade aparentemente prática de obter carne e couro de bisão, em última análise, estava relacionada à colonização e à conquista do território, segundo os historiadores.
“O desejo de riqueza e poder na forma de propriedade de terras, pessoas escravizadas e a busca por crescimento e lucros infinitos, além da transformação dos recursos naturais em commodities, são os motivos da intensa caça ao bisão e dos ataques físicos e políticos à condição humana e ao sentimento de nação dos indígenas ao longo de cinco séculos”, destaca Bethany Hughes, membro da nação Choctaw, do Estado americano de Oklahoma. Ela é professora do Departamento de Estudos Nativos Americanos da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos.
A Ferrovia Transcontinental, inaugurada em 1869, também acelerou a dizimação da espécie.
Em 1871, um curtume da Pensilvânia, nos Estados Unidos, desenvolveu um método de transformar a pele do bisão em couro comercial. Com isso, multidões de caçadores dizimaram rebanhos das planícies centrais americanas com “rapidez alarmante”, segundo um estudo.
A infame fotografia dos crânios de bisões foi tirada na refinaria Michigan Carbon Works, que processava os ossos. Ali, os ossos dos animais eram transformados em carvão, que era usado pela indústria açucareira para filtrar e purificar o açúcar. Os ossos também eram usados como cola e fertilizante.
“Esta foto registra uma iniciativa comercial muito bem sucedida, construída sobre os detritos criados pela expansão do Oeste americano e pela lógica racial que a acompanhava, de inferioridade dos nativos americanos”, afirma Hughes.
Nesta versão maior da imagem histórica, dois homens da refinaria Michigan Carbon Works posam sobre uma montanha de crânios de bisão.
“O colonialismo e o capitalismo andam juntos”, prossegue ela.
“Incentivar e se beneficiar com o tipo de sucesso econômico desta companhia que processava os ossos de bisão, [que] eram o subproduto das táticas, às vezes violentas, de expansão dos colonizadores americanos, era [o mesmo que] se beneficiar e participar de projetos coloniais que retiravam dos povos indígenas a sua terra, a sua nacionalidade e a sua cultura.”
Para Hughes, “esta foto não é um lembrete que reforça os danos do passado colonial. É uma acusação de práticas comerciais de consumo que obscurecem as condições éticas e materiais de produção de artigos de luxo, como o açúcar refinado, que é facilmente disponível e, aparentemente, inofensivo.”
‘Mate todos os que puder’
O abate do bisão também fez parte de campanhas militares que usaram a escassez de recursos como mudança tática.
É um fato bem documentado que oficiais do exército enviaram soldados para matar bisões no Oeste, como forma de esgotar os recursos dos nativos americanos durante a colonização dos Estados Unidos.
Uma análise do historiador Robert Wooster no seu livro The Military and United States Indian Policy (“Os militares e a política indigenista dos Estados Unidos”, em tradução livre) reconhece que o general do exército Philip Sheridan (1831-1888), responsável pela estratégia de “Guerra Total” contra as tribos das planícies do sul, “percebeu que eliminar o búfalo poderia ser a melhor forma de forçar os índios a mudar seus hábitos nômades”.
Existem registros de Sheridan dizendo aos legisladores que tentavam aprovar leis para proteger os rebanhos em declínio:
“[Os caçadores] estão destruindo os suprimentos dos índios. E é um fato conhecido que um exército que perde sua base de abastecimento fica em grande desvantagem… Para a paz duradoura, deixem que eles matem, tirem a sua pele e vendam até que os búfalos sejam exterminados.”
Em uma carta a um colega general em 1868, Sheridan escreveu que “a melhor saída para o governo, agora, é empobrecer [as tribos] com a destruição dos seus rebanhos e, depois, assentá-los nas terras atribuídas a eles”.
Outro oficial do exército, o lugar-tenente Coronel Dodge (1827-1895), disse a um caçador: “Mate todos os búfalos que puder! Cada búfalo morto é um índio que desaparece.”
As tribos nativas americanas sabiam o que estava acontecendo.
Satanta (c.1815-1878) – chefe da tribo Kiowa, nas Grandes Planícies – reconheceu que “destruir o búfalo significava a destruição dos indígenas”, relembra o explorador e caçador de bisões do Estado americano do Texas, Billy Dixon (1850-1913), na sua autobiografia.
“Para subjugar e conquistar para sempre as tribos das planícies, o general Philip Sheridan incentivou e praticou exatamente o que Satanta receava que pudesse acontecer”, segundo Dixon.
‘Falta de humanidade’
Privar os nativos americanos do bisão fazia com que eles fossem forçados a se mudar para as novas reservas estabelecidas para eles pelo exército americano. Só assim, eles poderiam cultivar alimentos para sobreviver.
A estratégia do exército funcionou. Os membros da tribo Kiowa foram posteriormente levados para uma reserva em Oklahoma.
Em questão de uma geração, a altura média dos nativos americanos que dependiam em grande parte do bisão – e, por isso, foram os mais prejudicados pelo abate – caiu em mais de 2,5 cm. No início do século 20, a mortalidade infantil entre eles era 16% mais alta e a renda per capita daquelas nações permaneceu 25% inferior, em comparação com as nações menos dependentes do animal.
Mas houve algumas discussões ao longo dos anos sobre o abate dos animais. Como os caçadores conseguiram matar entre 30 e 60 milhões de bisões, por exemplo?
Um estudo de 2018 apresentou esta questão e ofereceu uma resposta: uma doença epidêmica.
Segundo o estudo, duas doenças existentes nos Estados Unidos naquela época – o antraz, em Nebraska e no Texas, e a febre maculosa, em Montana – teriam sido “suficientemente mortais para exterminar dezenas de milhões de animais”.
Independente da causa, as populações de bisões nunca se recuperaram totalmente. A espécie ainda é relacionada como quase ameaçada.
Mas, nos últimos anos, surgiram esforços para trazer o bisão de volta às Grandes Planícies. Afinal, eles são extremamente importantes para o ecossistema das pradarias.
A Lei de Redução da Inflação de 2023, do governo dos Estados Unidos, reservou US$ 25 milhões (cerca de R$ 149 milhões) para a restauração do bisão em todo o país.
E também estão surgindo outros esforços menores: 1 mil bisões criados em reservas pertencentes à organização ambiental The Nature Conservancy foram devolvidos para suas terras de pastagem ancestrais.
Em outra iniciativa, um projeto de restauração em Montana pretende trazer 5 mil bisões de volta às pradarias e as tribos devolveram 250 bisões para suas terras, em parceria com a Federação Nacional da Vida Selvagem.
A mensagem por trás da espantosa montanha de crânios de bisão foi perdida ao longo do tempo, segundo Hughes.
Para ela, a imagem transmite uma mensagem simplista que faz com que os observadores sintam tristeza pelo passado, mas não os leva a confrontar “as formas que o sistema colonial e capitalista usa para continuar influenciando negativamente o nosso ambiente e as nossas vidas”.
“Mais do que isso, esta foto simboliza como os consumidores de produtos são o motor que dirige a máquina colonial.”
“Se você desumanizar outra pessoa ou transformar um ser vivo em um objeto, em um ‘recurso natural’, você terá revelado sua própria falta de humanidade e compreensão sobre o que significa viver em parceria com o mundo à sua volta”, prossegue Hughes.
“É importante compartilhar esta mensagem com o público, pois é um problema que persiste, não uma questão histórica.”