MUNDO
Gaza sem saída: moradores com dupla cidadania se sentem abandonados na cidade
Asia Mathkour espera ansiosamente por uma ligação informando que a passagem de fronteira de Rafah, entre a Faixa de Gaza e o Egito, está aberta para os moradores deixarem o enclave palestino. Mãe de duas crianças pequenas, a cidadã palestina-canadense vive com sua família em Gaza desde 2014. Mas, até agora, eles não puderam deixar a zona de conflito.
“Há duas semanas, recebi uma ligação dos canadenses que me disseram que a fronteira de Rafah poderia ser aberta e que deveríamos ir para lá sob nossa própria responsabilidade”, disse Mathkour por telefone, de Rafah. Mas sua esperança foi destruída poucas horas depois, ao se deparar com a passagem fechada. “Nós nos sentimos sozinhos, como se ninguém estivesse ajudando.”
Mathkour não está sozinha com seus medos e preocupações. Até agora, nenhum país conseguiu retirar seus cidadãos ou residentes com dupla nacionalidade do enclave palestino, que tem sido bombardeado por forças de Israel nas últimas três semanas.
A Embaixada do Brasil na Palestina monitora a situação de 34 pessoas que pediram ajuda para deixar Gaza, sendo 24 brasileiros, sete palestinos em processo de imigração e três palestinos que darão início à imigração. O governo brasileiro tem articulado com autoridades egípcias e israelenses a repatriação dessas 34 pessoas, por meio da passagem de Rafah.
Já autoridades da Alemanha disseram que há algumas centenas de alemães-palestinos em Gaza, a maioria com dupla nacionalidade, sem fornecer números específicos.
Na última quarta-feira, a Casa Branca disse que o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, renovou as discussões com o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, para garantir a passagem segura de estrangeiros e de palestinos com dupla cidadania.
Ninguém sai, quase nada entra
Mas a passagem de Rafah, agora a única rota de saída do território desde que Israel impôs um bloqueio total a Gaza, continua fechada.
Nos últimos dias, apenas alguns caminhões que transportavam ajuda humanitária urgentemente necessária foram autorizados a entrar na Faixa de Gaza vindos do Egito. E na noite de sexta-feira, as forças israelenses intensificaram seus ataques aéreos e expandiram suas operações terrestres.
Israel fechou todos seus pontos de passagem com Gaza após os ataques terroristas do grupo fundamentalista islâmico Hamas em 7 de outubro, que mataram mais de 1.400 israelenses nas comunidades do sul próximas à Faixa de Gaza. Pelo menos 229 pessoas foram sequestradas e estão sendo mantidas como reféns no enclave sitiado.
Em retaliação, Israel tem bombardeado Gaza com ataques aéreos e de artilharia. Segundo as autoridades locais, a ofensiva israelense já matou mais de 8 mil pessoas em três semanas.
O Hamas é classificado como uma organização terrorista pela União Europeia, Estados Unidos, Alemanha e outros países.
“Bombardeio ininterrupto”
Mathkour e sua família moravam em uma área ao norte da Cidade de Gaza, perto da fronteira israelense. Quando a guerra começou, a família se mudou rapidamente para um hotel no centro da Cidade de Gaza, uma área considerada relativamente segura em combates anteriores.
Mas, desta vez, os militares israelenses ordenaram a evacuação dos hotéis – bem como de todo o território no norte de Gaza, que inclui a Cidade de Gaza, orientando os palestinos que vivem nessa região a se dirigirem ao sul do enclave.
Como dezenas de milhares de outros residentes, Mathkour e sua família foram para a cidade de Rafah, no extremo sul – mas nem ali se sentem mais seguros.
“A noite passada foi um inferno. Foi a pior de todas as noites que já vivemos desde que chegamos a Rafah”, disse Mathkour na sexta-feira. “Foram bombardeios ininterruptos a partir dos tanques, e alguns bombardeios próximos sacudiram a casa inteira. Imagine como estávamos apavorados.”
Por outro lado, Mathkour também teme a difícil escolha que terá que fazer se a passagem fronteiriça for aberta. Somente aqueles com dupla cidadania e seus parentes mais próximos estarão nas listas de evacuação, e muitos de seus amigos e vizinhos não terão essa opção.
“Também me sinto mal porque as pessoas se voltam para mim e me fazem perguntas, porque tenho dupla nacionalidade”, diz. “Mas e os outros? Por que o mundo não está olhando para eles?”
“Nosso foco, mente e espírito estão em Gaza”
A um mundo de distância, na Cidade Velha de Jerusalém Oriental, anexada por Israel, o chef palestino Izzeldin Bukhari teme por seus parentes em Gaza, entre eles sua irmã.
“Estamos todos muito preocupados com o que está acontecendo em Gaza. Nosso foco, mente e espírito estão em Gaza”, disse. “Sete da manhã é realmente um momento assustador, porque esperamos notícias da minha família. É muito desgastante, exaustivo. Não tem como tirar isso da cabeça.”
A maior parte da família de sua mãe vive em Gaza, mas ele não consegue visitá-los há mais de 16 anos. Israel e, em parte, o Egito mantiveram um fechamento rígido do território governado pelo Hamas, e, para os palestinos de Jerusalém Oriental ou da Cisjordânia ocupada, tem sido difícil obter permissão das autoridades israelenses para entrar em Gaza.
A família de Bukhari morava em Rimal, um bairro de luxo no centro da Cidade de Gaza, que, segundo informações, foi duramente atingido neste conflito. “Minha tia foi morta em Rimal, ela tentou sair três vezes, mas houve muitos ataques, então eles tiveram que voltar para casa”, disse Bukhari. “As pessoas se movem de um lugar para outro, esperando que haja um abrigo melhor.”
A maioria de seus parentes se deslocou para o sul da Faixa de Gaza. Mas manter contato tornou-se cada vez mais difícil, pois as redes de comunicação ficaram fracas devido à falta de eletricidade e aos danos generalizados à infraestrutura.
“Minha irmã lá tem vários cartões SIM. Ela continua tentando, e nós também tentamos em horários diferentes do dia. No início da guerra, havia mais comunicação.” Agora, afirma Bukhari, há muito menos, mas “temos que continuar tentando”.
Na noite de sexta-feira, o exército israelense expandiu sua operação terrestre, e as redes telefônicas e de internet foram amplamente desativadas. Um dia antes, Mathkour dissera que a vida que ela conhecia em Gaza provavelmente se foi para sempre. “Tudo o que esperamos é continuar vivos.”