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Gravuras do rio Negro foram ateliês de antigos povos amazônicos
As gravuras milenares representando rostos, animais e elementos da natureza amazônica incrustadas na superfície do pedral e nas rochas submersas do sítio arqueológico Ponta das Lajes (ou apenas Lajes), localizado na margem esquerda do rio Negro, na zona leste de Manaus, foram feitas em épocas diferentes, quando os antigos povos da Amazônia confeccionavam ferramentas para o seu dia a dia e para desenhar as artes como meio de comunicação. Eles aproveitavam grandes vazantes para fazer essas intervenções.
Em 2023, à medida que o nível das águas do rio Negro desce, estes achados afloram cada vez mais nos blocos rochosos do sítio, conforme revelou a Amazônia Real. Muitos destes petróglifos eram até então desconhecidos por esta geração. O nível do Negro chegou a 12,89 cm nesta segunda-feira (23).
A avaliação é do arqueólogo Carlos Augusto da Silva, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), que afirma que, possivelmente, as gravuras em pedra foram feitas parceladamente e não intensivamente, com espaços de tempos bastante largos. Para ele, a cada descida mais severa do rio, os povos reutilizavam os orifícios feitos nos blocos de rochas como oficinas líticas. Na seca de 2023 elas são observadas facilmente nas rochas. Uma única rocha encontrada no sítio das Lajes tem 25 conjuntos de amoladores, segundo Silva, em entrevista à Amazônia Real.
“Foi um local de preparação de ferramentas. Não foram feitas só numa baixada d´água. Levou muito tempo, anos, décadas. O rio baixava e eles utilizavam essa matéria-prima para fazer ferramenta de corte”, diz o arqueólogo.
Na visita que fez ao sítio neste sábado (21), Carlos Augusto da Silva afirma que viu um conjunto de amolador, polidor e afiador. “A gente viu bastante essas figuras. Essas unidades talvez formassem um ambiente, um ateliê ou oficina de produção de peças líticas. Um dado interessante é que estão muito bem esféricos, matematicamente são bem calibradas”, diz.
Entre as ferramentas produzidas estão lâmina de machado, mão de pilão, cunha para partir lenha e outras peças para polir madeira ou cavar a terra.
O arqueólogo também destacou o tamanho de muitas das esferas do conjunto rochoso – em torno de 12cm -, considerado pequeno para o padrão encontrado em outras pedras de sítios da bacia amazônica. Para ele, isso indica que o ambiente também era uma espécie de “escola” para ensinar as crianças a fazer ferramentas.
“Esses conjuntos são comuns na calha do rio Negro. Agora, essa do Encontro das Águas, são pequenas. Acredito que tenha sido uma oficina juvenil, de crianças trabalhando. Talvez para aprender ferramentas líticas. Mas todo mundo junto ali estava fazendo as peças”, diz.
Como não há estudos sobre as gravuras pré-colombianas do sítio das Lajes, a estimativa é que elas tenham entre 1000 e 2000 anos, com base em pesquisas feitas em outros sítios, como é o caso do Caretas, no município de Itacoatiara, no Amazonas. O que se pode afirmar, porém, é que a população daquela área era expressiva e havia uma coordenação de trabalho que envolvia todos os moradores.
“Eram muitas pessoas vivendo nesse ambiente. Não eram poucas pessoas para produzir. O rio sempre secou, mas tinha bastante água e floresta que os povos preservavam. Por isso não era tão quente assim como hoje”, diz Silva.
Também não se pode afirmar quem eram os povos que habitavam nesta área e ao longo da bacia e dizer com precisão o significado das intervenções. Elas provocam apenas interpretações. Chama atenção, contudo, que alguns deles representam não apenas rostos, mas figuras antropomorfas, representativas de animais ou características da natureza, especialmente as águas.
Sítio tem fragmentos cerâmicos
O sítio arqueológico das Lajes traz características que revelam que ele foi ocupado por mais tempo, muito antes dos petróglifos. Ao redor do complexo rochoso há inúmeros fragmentos cerâmicos de tamanhos variados encontrados na praia que margeia o pedral, além de solos de terra preta (como é chamada a área mais fértil do solo amazônico) na área das encostas da falésia (paredão no entorno da superfície rochosa).
Muitas dessas peças são encontradas por moradores que visitam a área. O acesso até o local pode ser pelo rio, através de pequenas embarcações, ou por uma extensa escadaria feita de pneus que alcança a praia. O outro acesso, menos penoso, é através de autorização do Instituto Soka Amazônia, organização ligada à Soka Gakkai, que mantém na área a Reserva Particular de Patrimônio Natural Daisaku Ikeda (RPPN Daisaku Ikeda)
O educador e ativista ambiental Valter Calheiros, que acompanha anualmente a seca do rio Negro e foi um dos primeiros a ver as gravuras deste ano, encontrou na semana passada vários fragmentos cerâmicos de diferentes tamanhos. O mais significativo e vistoso tem idade estimada entre 2000 e 2300 anos e apresentava tamanhos de 0,30 centímetros de comprimento.
Para Valter Calheiros, o ideal era que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico (Iphan), órgão federal do Ministério da Cultura, resgatasse os fragmentos. No caso específico da peça que encontrou, Calheiros apenas fotografou e deixou no mesmo local, marcado de um modo que somente ele saiba onde permanece.
“Nesta grande vazante, a praia das Lajes apresentou mais, muito mais, cerâmicas que o que vimos em 2010. Precisamos ter uma ação institucional de emergência para registrar e se possível resgatar. Demorou 13 anos para reencontramos material cerâmico na praia”, conta.
O fragmento encontrado por Valter Calheiros é um exemplar de ocupações de povos ceramistas sedentários de toda a região e é conhecido como cerâmica Açutuba, em referência à comunidade do mesmo nome, na região de Manaus.
Segundo a arqueóloga Helena Lima, que pesquisou as cerâmicas do sítio das Lajes, trata-se de um estilo encontrado em toda a região do baixo rio Negro e Solimões e que se comunica com outros estilos dessa mesma faixa temporal: entre 3 e 2 mil anos atrás e em toda a bacia amazônica indo até o baixo amazonas, onde são encontradas as cerâmicas Pocó.
“Foi um momento da história antiga da Amazônia com grandes dispersões populacionais e o estabelecimento de amplas redes de comunicação. A cerâmica, muito elaborada, é também muito padronizada, mostrando que havia clara intenção de comunicar esse estilo por esses povos. É quando sabemos que as terras pretas se tornam comuns, o manejo ou cultivo de plantas e a vida sedentária em aldeias articuladas se tornam o padrão na calha do Amazonas e afluentes”, explica Helena Lima, atualmente pesquisadora do Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém.
As culturas batizadas de Pocó e Açutuba são conjuntos regionais que fazem parte de uma mesma matriz antiga. Pocó é referente a um sítio localizado no Baixo Amazonas, entre o município de Nhamundá, no Amazonas, e a região do rio Trombetas, no Pará.
Helena afirma que nas cerâmicas também são comuns as representações de animais a partir de apliques modelados e incisões e de forma muito elaborada e também padronizada.
O arqueólogo Eduardo Goes Neves, professor da Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro “Sob os Tempos do Equinócio – Oito mil anos de história da Amazônia Central”, afirma que este tipo de material tem uma dispersão grande pela bacia amazônica e está associado a ocupações de terras pretas mais antigas, com mais de 2000 anos. Segundo ele, há especialistas que associam estes materiais a povos que falavam a língua da família Aruak.
“Em 2014, baseada em pesquisas de outros lugares da Amazônia, a gente percebeu que esse tipo de cerâmica tem uma dispersão muito grande, e na região do rio Orinoco. É um indicado arqueológico de um processo histórico que aconteceu na região”, diz Neves.
Rochas têm milhões de anos
A Ponta das Lajes também é considerada um sítio geológico por suas formações rochosas do período Cretáceo – uma era muito mais antiga do que o próprio rio Amazonas.
Não é surpresa que a grande seca de 2023 permitiu a visualização de marcas paleontológicas como os icnofósseis – vestígios de atividades de organismos nas rochas.
O geólogo Emílio Soares, professor do departamento de Geociências da UFAM, desenvolve pesquisas geológicas nas unidades de rochas sedimentares paleozoicas-cenozóicas da Bacia do Amazonas, principalmente na Amazônia Central-Ocidental.
Ele explica que o afloramento da Ponta de Lajes tem relevância para os estudos geológicos, paleontológicos e arqueológicos da Amazônia Central, em função da grande extensão em área e espessura aflorante das rochas.
“As rochas sedimentares do afloramento de Lajes representam o registro de um antigo sistema fluvial que se implantou na região no período geológico Cretáceo (120 a 65 milhões de anos), sendo representativas da unidade geológica denominada de Formação Alter do Chão da Bacia do Amazonas”, disse o geólogo à Amazônia Real.
Soares conta que o afloramento é constituído principalmente por camadas de arenitos, com pelitos (argilitos-siltitos) e conglomerados subordinados que representam depósitos de barras fluviais e planície aluvial/lago deste antigo sistema fluvial.
“Internamente, alguns icnofósseis (traços fósseis) foram identificados impressos nas rochas, como paleotocas, que são cavidades efetuadas por animais, e marcas de raízes que se fossilizaram no substrato rochoso.”
O geólogo e professor da UFAM conta que pretende, após a visita ao local, elaborar um perfil geológico-arqueológico do afloramento de Lajes, com a identificação das camadas individuais de rochas (arenitos, pelitos e conglomerados) e identificação dos níveis que contém material arqueológico.
Emílio Soares chamou atenção também para a falta de proteção no sítio para evitar depredação antrópica (atividade humana) no local, pois o acesso é livre e não existe fiscalização.
“Apesar de ficar submerso por alguns meses no ano, também não existe qualquer sinalizador para o tráfego de embarcações que podem causar danos ao afloramento rochoso”, diz.
O que diz o Iphan
Procurado para falar sobre a proteção do sítio, o Iphan disse que, junto com o Instituto Soka Amazônia, pretende realizar “ações educativas voltadas à preservação ambiental e patrimonial, com atividades de recolhimento do lixo no local, visando sensibilizar a comunidade sobre a importância de preservar os rios e os bens arqueológicos”. Uma dessas ações acontecerá dia 1º de novembro, no Instituto Soka Amazônia.
“Entendendo que a gestão do bem deve ser contínua, o Iphan vem procurando outros parceiros para realizar a gestão compartilhada, de maneira que se assegure a preservação e a integridade do bem”, diz a nota.
Segundo o Iphan, o sítio arqueológico Ponta das Lajes, “está em bom estado de conservação” e que as pinturas feitas pela população no pedral das Lajes não estão sobrepostas às gravuras e amoladores do sítio arqueológico, mas em área adjacente, a pelos menos 100 metros de distância.
“Quanto aos resíduos sólidos encontrados no local, destaca-se que parte significativa desse material é proveniente do descarte inadequado em outros pontos ao longo do rio Negro. Informamos que a presença desses resíduos gera preocupação, razão pela qual orientamos aos visitantes evitarem levar material plástico ou similar quando das visitas ao local, recolher e retornar com os resíduos e efetivar o descarte correto dos materiais eventualmente levados”.
O órgão diz que, conforme a legislação de proteção ao patrimônio arqueológico (Lei 3924/1961), é terminantemente proibido alterar a composição dos sítios arqueológicos por quaisquer meios, razão pela qual reforçamos a proibição quanto ao acendimento de fogueiras no local.
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