A vitória do “sim” no referendo da Venezuela sobre a criação de um novo estado em um território hoje sob domínio da vizinha Guiana já era esperada. Mas o que acontece agora?
A consulta popular não tem efeito vinculante, ou seja, não cria uma obrigação legal de que a Venezuela institua o estado, que é chamado lá de Guiana Essequiba.
Também não se trata de um referendo de autodeterminação, uma vez que os 125 mil habitantes do território de Essequibo não votaram — são cidadãos da Guiana, embora o projeto do ditador Nicolás Maduro inclua a concessão de cidadania venezuelana a eles.
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Apesar de não haver consequências jurídicas, autoridades do governo avaliam a vitória do “sim” como um reforço da reivindicação territorial, que é alvo de disputa na CIJ (Corte Internacional de Justiça), órgão jurisdicional da ONU (Organização das Nações Unidas).
O chefe do comando de campanha para o referendo sobre Essequibo, o chavista Jorge Rodríguez, afirmou que a consulta realizada no domingo permitirá definir estratégias para o resgate do território de quase 160 mil km² em disputa com a Guiana.
“O fundamental é saber qual é o mapa que o povo da Venezuela nos traça para as estratégias a seguir no futuro”, disse o também presidente da Assembleia Nacional.
Josmar Fernández, especialista em resolução de conflitos, ressalta também que a disputa “truncou […] uma saída aberta para o Atlântico” para a Venezuela.
O lema “O Essequibo é nosso” aparece sempre na televisão e enche os muros nas ruas. Muitos analistas estabelecem paralelos com a Argentina e as Malvinas (Falklands), ilhas sob domínio britânico, mas reivindicadas pelos argentinos.
A Guiana, no entanto, insiste em que não cederá “uma palha de grama” à Venezuela, inspirada em uma música da banda The Tradewinds, que fala em “não recuar, não ceder nem uma montanha” quando “forasteiros falam em invadir”.
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O tom está subindo. A Venezuela constrói uma pista militar perto da fronteira, e a Guiana propõe estabelecer bases de aliados estrangeiros na área.
Pode acabar em conflito? “É um cenário”, diz Fernández.
“Quando se fala em território, estamos falando também de um compromisso onde estão impregnados sentimentos nacionalistas”, embora “a Venezuela tenha se caracterizado tradicionalmente pela negociação”.
Maduro fala em “diplomacia de paz”. O presidente da Guiana, Irfaan Ali, pede “bom senso”.
O presidente venezuelano salientou que o “primeiro efeito que a voz poderosa da unidade nacional deve ter” é fazer o presidente Irfaan Ali, que “tomou o caminho do confronto”, retomar o Acordo de Genebra para resolver a controvérsia com um mecanismo de “negociação pacífica e diplomática”.
“É uma das maiores aspirações”, destacou Maduro, que afirmou ser a “primeira vez” em “150 anos de luta” por Essequibo que “se abrem as portas dos centros eleitorais” para “exercer a soberania absoluta”.
‘É nosso’
A Venezuela argumenta que o rio Essequibo é a fronteira natural com a Guiana, como em 1777, quando era Capitania Geral do Império Espanhol. O país apela ao Acordo de Genebra, assinado em 1966, antes da independência da Guiana do Reino Unido, que estabeleceu as bases para uma solução negociada e anulou uma decisão de 1899, que definiu os limites atuais.
Georgetown, no entanto, defende o laudo de 1899 e pede que seja ratificado pela CIJ.
O “sim” também venceu com percentuais superiores a 95% nas outras quatro perguntas do referendo, que contemplavam a rejeição ao laudo de Paris e da jurisdição da CIJ, o apoio ao Acordo de Genebra e a oposição ao uso pela Guiana das águas marítimas de Essequibo, onde o governo de Georgetown e o gigante petroleiro americano ExxonMobil iniciaram a exploração de vastas reservas de petróleo descobertas em 2015.
O referendo sobre Essequibo a princípio não teria consequências concretas a curto prazo: a Venezuela busca reforçar sua reivindicação e negou que a iniciativa seja uma desculpa para invadir e anexar a zona à força, como temem os guianenses.
“Essequibo é nosso, foi nosso durante toda a vida”, declarou à AFP Mariela Camero, de 68 anos, uma das primeiras a votar em uma área popular de Caracas.
Votos ou eleitores?
No primeiro boletim, o presidente do CNE (Conselho Nacional Eleitoral), Elvis Amoroso, anunciou mais de 10,5 milhões de votos — de um eleitorado de 20,7 milhões — em meio a relatos de baixo comparecimento aos locais de votação.
O número provocou polêmica, pois o CNE não divulgou os dados da abstenção. Líderes da oposição e alguns analistas interpretaram o anúncio como uma tentativa de disfarçar uma taxa de participação “pequena”.
“Segundo Elvis Amoroso, a participação de hoje [ele não se atreveu a afirmar] foi de 2.110.864 eleitores. Foram cinco votos por eleitor […]. Maduro transformou uma oportunidade de fazer algo bom para todos os venezuelanos em um fracasso estrondoso”, destacou o ex-candidato à Presidência e líder opositor Henrique Capriles na rede social X.
“É muito difícil compreender resultados dessa maneira”, disse Luis Vicente León, diretor da empresa de pesquisas Datanalisis.
‘Guerra’ de bandeiras
O presidente da Guiana, Irfaan Ali, que denunciou o referendo como uma “ameaça”, disse que seus compatriotas não tinham “nada a temer”.
“Estamos trabalhando incansavelmente para garantir que nossas fronteiras permaneçam intactas e que a população e nosso país continuem seguros”, declarou em uma transmissão no Facebook.
O ministro venezuelano da Defesa, Vladimir Padrino, e outros funcionários de alto escalão do governo, como a vice-presidente Delcy Rodríguez, divulgaram um vídeo em que indígenas substituem uma bandeira da Guiana em um mastro por uma bandeira da Venezuela.
Eles afirmaram que é a mesma bandeira hasteada em 24 de novembro por Ali na serra de Pacaraima, na área reivindicada.
Procurado pela AFP, o comandante do Estado-Maior das Forças Armadas da Guiana, brigadeiro Omar Khan, afirmou que o vídeo seria “falso” e o chamou de “propaganda de guerra”.
‘Bom senso’
A reivindicação da Venezuela se intensificou desde que a ExxonMobil descobriu, em 2015, petróleo em águas disputadas, o que deixa a Guiana com reservas de petróleo comparáveis às do Kuwait e às maiores reservas per capita do mundo.
Milhares de guianenses formaram correntes humanas no domingo, chamadas “círculos de união”, para mostrar seu apego à região. Muitos vestiam camisetas com frases como “O Essequibo pertence à Guiana” e agitavam bandeiras do país.
“Não temos as armas, os tanques de guerra. Temos Deus, que nos protegerá”, disse à AFP Dilip Singh, empresário que participou em uma das manifestações na província de Pomeroon-Supenaam, em Essequibo.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que reforçou as tropas brasileiras na fronteira, disse no domingo que espera que “o bom senso prevaleça” nesta disputa e ressaltou que a região não precisa de confusão.
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