POLÍCIA
O silêncio ensurdecedor: mulheres abusadas na infância que reconheceram abusador após acidente e decidem denunciar
Poderia ser mais uma matéria de um acidente de trânsito como muitos que acontecem diariamente na cidade. Seria, se não fosse pelo fato do acidentado ter sido exposto e reconhecido por dezenas de mulheres que afirmaram terem sido abusadas por ele quando crianças.
Sandro Torres Cavalcante, 56 anos, sofreu um acidente na última sexta-feira, 3, e ao ser veiculado neste site e acabou sendo reconhecido por dezenas de vítimas, que afirmaram terem sido abusadas por ele na infância.
O Na Hora da Notícia conversou com uma das vítimas, que relatou ter registrado um boletim de ocorrência junto com a família, após ter coragem de contar o que passou nas mãos de Sandro.
A vítima, que não será identificada, hoje tem 18 anos, e contou que, na época do crime, tinha oito anos de idade. “Eu morava com os meus pais e esse homem morava na mesma rua. A casa dele ficava na esquina. Na época, eu sempre costumava brincar na rua com a minha irmã, no final da tarde, até que um dia eu passei em frente à casa dele e ele nos viu. Ficou tentando puxar assunto como alguém que não queria nada, minha irmã me chamou pois tínhamos que voltar para casa. Dei tchau para ele e fomos. No dia seguinte, eu fui brincar novamente na rua, só que, dessa vez, eu estava sozinha. Ele me chamou e perguntou o que eu gostaria de ganhar de presente. Respondi que uma casa de bonecas e ele disse que iria me dar esse presente, mas eu teria que voltar lá no outro dia para buscar. Fiquei empolgada, pois era o brinquedo que eu mais sonhava em ganhar naquele tempo”, conta a vítima.
Ela continua e relembra que voltou no dia seguinte e perguntou pelo presente e ele respondeu que estava dentro de casa. “Segui ele até o quarto, entrei e ele trancou a porta. Ele me sentou na cama e começou a me beijar e dizia que era um beijo de “amigo”. Eu não conseguia fazer e nem dizer nada, apenas ficar parada, a sensação foi de como se eu estivesse em outro lugar, menos ali. Ele me beijava, passava a mão nas minhas partes íntimas e repetia várias vezes que era tudo como amigo. Me lembro nitidamente de tentar fugir dele de todo jeito e ele não deixava. Quando ele saiu de perto por um instante imediatamente corri e consegui fugir. Fui para casa, me tranquei no quarto e comecei a chorar”, conta.
A vítima disse que não conseguia contar a ninguém e guardou tudo que viveu naquele dia até seus 14 anos quando estava no carro com a e ele parou seu veículo ao lado deles e ela contou tudo a família. “Não aguentei e contei para minha família, imediatamente, anotamos a placa do carro dele, ele estava com várias meninas, bem novas, aparentemente. No dia seguinte, fui na delegacia com a minha mãe, conseguiram informações dele, registramos o boletim e ocorrência, mas, infelizmente, nenhuma medida foi tomada, nunca mais tivemos retorno”, lamentou.
Essa não foi a única vítima de Sandro, entre os inúmeros relatos, o Na Hora da Notícia também conversou com outra mulher, hoje com 37 anos, que disse ter entre oito e nove anos de idade quando ele passou na casa de seus pais e disse que pagaria R$ 10 para ela lavar umas peças de roupa.
“Era meu sonho alisar o cabelo e minha família era muito humilde. Fui, ele disse que era três bermudas e duas blusas. Lavei duas blusas e duas bermudas e falei que faltava outra bermuda e que eu precisava ir embora. Então ele tirou a bermuda que estava vestido já com o pênis duro e veio pra cima de mim, pegou nos meus seios, ainda sangrei um pouco e ele não terminou o ato porque eu comecei a gritar e uns meninos vieram me ajudar”, relatou.
Como sequela do abuso, a mulher conta que nunca conseguiu amamentar os filhos e que ao ver a matéria do acidente e reconhecer o homem relembrou tudo que viveu na época.
“Quem vive esse tipo de violação é um sobrevivente emocional”, diz psicóloga
A reportagem do NHN conversou com a neuropsicóloga Daciula Verçosa que falou dos motivos que as crianças têm medo de contar sobre os abusos. De acordo com a profissional, quando vamos falar sobre esse assunto acabamos passando por vários campos como culturais, da idade da criança e de sua compreensão, e passa pela vergonha e medo.
“Todos esses aspectos têm uma relevância na hora da criança falar ou não. Quando nós vamos falar de uma criança que já vive no meio onde o abuso sexual é acontecido constantemente para ela aquilo é normal até que ela consiga compreender. E isso vai acontecer mais pra vida adulta. Quando a criança já tem a compreensão de que o que viveu foi um abuso e alguém está molestando ela ou algo do tipo ela vai precisar acreditar que ela vai ter credibilidade. Mas aí o que acontece, o fator cultural tira muito da credibilidade da criança e aí vamos verificar se a criança está falando a verdade mesmo ou está mentindo porque alguém mandou. Como de costume acontece no seio familiar é fácil tirar o crédito de uma criança, é muito fácil que uma mãe não queira que o pai seja o abusador. É difícil pra mãe saber que a criança está falando a verdade e o avô não. O que acontece, essa criança já está com vergonha, internamente ela já tem medo de ser culpada também e cair no descrédito é pior e o que ela faz? Ela prefere não falar. E veja que são vários aspetos que levam uma criança a não falar, mas dentre eles existem duas predominâncias: o medo é uma e a vergonha de ter que admitir que o corpinho foi tocado, foi molestado”, diz Daciula.
A profissional afirma ainda que a pessoa que vivenciou o abuso sexual seja com ou sem penetração é um sobrevivente emocional. “Quem viveu o molestar, quem viveu essa violação é um sobrevivente emocional. Não existe viver essa violação e dizer que nunca sentiu nada. A pessoa pode não ter percebido o quanto isso influenciou sua vida o tempo inteiro, mas não tem como passar por isso sem sequelas. Não estamos falando de pessoas que viveram, que vivem, estamos falando de sobreviventes emocionais, que toda vez que tem uma relação sexual ou vê a filha ou o filho saindo, ou que tem que ficar perto de um estranho ou algo do tipo é o primeiro pensamento que vem, é o primeiro medo que vem. Às vezes, quando encontramos pessoas que não lembram elas só sentem o medo, mas não sabem de onde vem, mas é o medo da violação”, explica.
Psicóloga explica as consequências na vida adulta
Daciula diz, também, que mulheres adultas que sofreram abuso quando crianças apresentam um nível de insegurança gigantesca. “Ninguém nasce seguro de si, o ambiente gerador de segurança é o familiar. E observem que os abusos até acontecem meio a estranhos, mas a predominância e no seio familiar e com isso a criança já cresce sem segurança, automaticamente, ela não vai se sentir parte de lugar nenhum e vai ser uma pessoa insegura de tudo. Pois a insegurança ela passa pelos campos da vida”, explica.
A profissional diz ainda que a pessoa vítima de abuso vai desenvolver inseguranças desde apresentar um trabalho acadêmico, para conseguir um emprego, dentro de um relacionamento e vai ser uma pessoa em constante alerta e não vai saber o motivo, mas vai ser um gerador de ansiedade o tempo inteiro.
“Ela vai viver em estado de alerta constante, porque no início da vida, no primeiro seio social, no ambiente familiar, onde seria o gerador de seguranças, acolhimentos ela estava como? Estava sendo violada, estava vivendo uma das maiores inseguranças, que alguém poderia viver, que é a insegurança do corpo, que foi ou estava sendo violado. Se você partir do princípio que uma pessoa insegura é alguém totalmente regida por medo, poderá ser observado que, na vida adulta, ela terá medo de dirigir, de se posicionar, ela não vai acreditar que ela pode se colocar quando precisa. E será sempre regida por inseguranças, que traz medo, ansiedade e, também, depressão. Veja que o prejuízo é gigantesco, quando falamos da violação do corpo”, afirma.
Daciula aponta ainda que, para muitos quem não denunciou na época não teria por que mexer no caso anos depois já que “passaram tantos anos” e a pessoa “viveu” esse tempo todo.
“As pessoas não têm ideia de como essa pessoa viveu daquele momento em diante e como aquilo refletiu nos seus relacionamentos, diálogos, amizades, na confiança em outras pessoas. Eles não têm ideia que aquela pessoa sobreviveu emocionalmente falando e ela nunca se sentiu parte de lugar nenhum. Então, sim, é mais sério do que parece e as sequelas são horríveis e o abusador precisa sim ser punido cada vez mais para que entendam que um corpo que não é seu não pode ser tocado sem permissão”, explica.
Denunciar é preciso
Casos de abusos devem ser denunciados passe o tempo que passar. Quando uma mulher denuncia ela impede que outras crianças e mulheres sejam vítimas e passem por tudo que ela passou.
A reportagem conversou com a advogada Vanessa Facundes, que é defensora assídua da causa das mulheres e ela disse que o abusador deve ser denunciado, pois nunca fará uma só vítima, mas várias.
“Quando a mulher denuncia ela livra outras. Principalmente agora que não prescreve e mesmo com a lei anterior prescrição demora”, explica.
A delegada da Delegacia da Mulher (Deam), Elenice Frez, disse que há dois processos contra Sandro e que na manhã desta quarta-feira, 8, mais duas vítimas se apresentaram para registrar boletim de ocorrência contra o mesmo.
O homem segue internado no Pronto-Socorro de Rio Branco e suas vítimas, agora, aguardam que ele seja responsabilizado por danos causados a elas e as que se calaram por medo e vergonha.