POLÍCIA
Quem é a família dona de rico acervo com suspeita de golpe de R$ 720 mi
As obras subtraídas de uma idosa de 82 anos, suspeita de ser vítima de um golpe que teria sido arquitetado pela própria filha, Sabine Coll Boghici, faziam parte do acervo de um dos mais importantes “marchands” e colecionadores de arte do Brasil, Jean Boghici, que morreu em 2015, aos 87 anos, deixando um patrimônio artístico avaliado em mais de R$ 700 milhões para a companheira.
O artista plástico romeno, que colecionava obras desde os anos 1960, foi dono da galeria Relevo, na capital carioca, e reuniu um dos acervos mais importantes de arte brasileira. Entre as obras repassadas para os golpistas estava o quadro “Sol Poente”, de Tarsila do Amaral, que deu nome à operação realizada hoje para prender os suspeitos da extorsão contra Geneviève Boghici, 82.
Jean Boghici se mudou para o Brasil em 1948 para escapar das consequências da Segunda Guerra Mundial na Romênia, chegando em um navio francês ao Rio de Janeiro, onde passou os primeiros meses trabalhando no conserto de rádios e dormindo na areia da praia.
“Sempre gostei de eletrônica e construí um rádio de ondas curtas. Um dia, sintonizei [Winston] Churchill dizendo que uma cortina de ferro soviética cairia sobre o meu país. Achei melhor fugir dali”, declarou o colecionador, que chegou a cursar engenharia em seu país natal, ao jornal carioca O Globo, em 2012.
Seu talento como cartunista e desenhista facilitou sua conexão com grupos de artistas cariocas, incluindo a escultora Lygia Clark, com quem namorou por seis anos. Durante o relacionamento, ele chegou a ajudar a mineira na confecção da obra “Bichos”, uma de suas mais conhecidas.
A carreira de Boghici teve uma guinada quando ele ganhou uma competição de perguntas e respostas sobre a vida do pintor Vincent Van Gogh, na TV Tupi. Ele foi “descoberto” por um produtor da emissora em um bar da capital carioca e conta que estava “mal cuidado” após sofrer um acidente de moto, atribuindo a aparência exótica, semelhante a Kirk Douglas interpretando o holandês no cinema, pelo convite para o quiz.
Com o valor do prêmio, US$ 200 mil, ele comprou um apartamento em Copacabana, onde viveu pelo resto da vida, e tirou um período sabático para viajar. Na volta, ele abriu sua própria galeria, a Relevo, ao lado de dois sócios.
Além de introduzir as obras de novatos brasileiros e estrangeiros em seu espaço, o colecionador mantinha uma relação próxima com artistas já consagrados, como Di Cavalcanti, que era vizinho de prédio do romeno.
Em 2012, seu apartamento no famoso bairro carioca foi palco de um incêndio que destruiu alguns dos quadros de seu acervo, incluindo o clássico “Samba”, de Di. Mas, em uma entrevista à revista Veja na ocasião do incidente, ele destacou que a maior perda foram dois de seus 16 gatos, mortos em meio ao fogo, que começou após um curto-circuito no ar-condicionado do quarto de Sabine.
Filha se apresenta como artista e ativista da causa animal
Suspeita de extorquir a mãe, Sabine Coll Boghici, 48, se apresenta como atriz, cantora e colecionadora de brinquedos antigos em colunas sociais do Rio de Janeiro.
A carioca, que tem mais de 3 mil itens em seu acervo de peças antigas, usa apenas o sobrenome da mãe em seu nome artístico e sempre fez questão de conectar seus projetos à causa animal. Em 2011, ela se reuniu com artistas como Lui Medeiros para um show na Lapa, intitulado “Solidariedade Animal”, com o objetivo de arrecadar fundos para o Abrigo João Rosa, que cuida de cães abandonados..
Anos depois, em 2019, Sabine foi ao programa “Sem Censura”, da TV Brasil, para falar sobre seu trabalho como fundadora do chamado Centro de Reabilitação Animal (CRASB), uma ONG de resgate de bichos em situação vulnerável.
A causa animal, inclusive, está no centro de uma disputa judicial entre a mulher e a mãe. Em junho deste ano, a filha da francesa sofreu mais uma derrota na Justiça carioca em um processo pedindo a guarda dos animais de estimação da família Boghici, que estão em um sítio na região serrana do Rio de Janeiro.
No processo, Sabine também detalha sua insatisfação com as negativas da idosa em ceder um imóvel mais ao centro da capital carioca para que a filha pudesse se mudar, sob o pretexto de facilitar o trabalho de resgate.
Colecionador e a mulher viveram em Paris
No total, segundo as investigações, Geneviève entregou 16 quadros aos golpistas, ao longo dos últimos dois anos. Em um primeiro momento, ela chegou a transferir quantias em dinheiro que somam R$ 5 milhões a uma suposta vidente, que a abordou na saída de um banco, em janeiro de 2020, afirmando ter previsto que a filha da idosa iria morrer.
A viúva de Jean aceitou realizar pagamentos para que a charlatã fizesse um tratamento espiritual com o suposto objetivo de salvar Sabine. Mas tudo mudou quando a filha passou a privar a mãe de receber visitas e demitiu os funcionários que trabalhavam em sua casa, segundo a Polícia Civil.
A corporação afirmou hoje que a idosa desconfiou do golpe e parou de enviar remessas, sendo então ameaçada pelos suspeitos, que chegaram a ir até seu apartamento, para continuar cedendo seus bens. Dois dos quadros subtraídos pelo esquema e negociados com galerias de arte estão hoje no acervo particular de Eduardo Costantini, fundador do Malba, o Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires.
Quando o assunto é a biografia de Geneviéve, as informações públicas são bem mais raras que as sobre seu marido. No final dos anos 1960, a francesa voltou à sua terra natal acompanhada pelo colecionador, onde passaram cerca de 10 anos, em Paris.
Na época, o marido aproveitou a estadia na capital francesa para “repatriar” obras de artistas brasileiros, que fazem parte da coleção subtraída no golpe que teria sido orquestrado por Sabine.
O UOL tenta localizar os advogados que representam tanto mãe quanto filha, mas a polícia e o poder judiciário não apontaram até o momento quem os representa. A reportagem será atualizada caso haja posicionamento.