O professor ainda chama a atenção para a obsessão do governo à época. “A ditadura monitorava todos. As pessoas precisavam sentir medo, sentir que estavam sendo vigiadas. Em um regime totalitário, o cidadão comum se torna inimigo do Estado.”
Pipoqueiro e traficante
Entre as milhares de páginas disponíveis, um relatório com 98 folhas apontou a Operação Sepemar, que tinha o objetivo de desvendar quem fornecia maconha a militares. Com o decorrer da investigação, a Segurança Pública descobriu que se tratava de um pipoqueiro traficante, que tinha um ponto em frente à Igrejinha, na 306 Sul.
“Com o intuito de disfarce, vendia pipocas nesse local, onde a afluência de menores era bem grande, e a faixa etária variava de 13 a 18 anos”, consta no relatório. As investigações que tiveram início em 11 de dezembro de 1972 e foram concluídas em 16 de março, com a prisão do pipoqueiro e demais envolvidos, também monitoraram pessoas que simplesmente compravam pipoca do homem.
O diagnóstico tem a identificação pessoal de 50 jovens de 13 a 25 anos, com o endereço da casa de cada um e da escola dos estudantes. Constam alunos de colégios até hoje tradicionais do DF, como Marista e La Salle. Nos autos, o pipoqueiro foi classificado como “pederasta”.
Entre os compradores e vendedores, estão relatados seis militares do Exército, dois da Aeronáutica, oito fuzileiros navais, 11 policiais militares do DF e 12 pessoas civis.
Música alta
Em 1971, os militares montaram um dossiê contra uma moradora da 206 Sul a partir de reclamações de vizinhos pelo som alto da “radiola”, conforme consta em um relatório. “Coloca o seu rádio em altura excessiva, perturbando a tranquilidade de seus vizinhos.” Essa primeira denúncia fez com que a polícia procurasse por ela.
Ao bater à porta da servidora pública, diz o documento, a moradora tentou dar uma “carteirada” dizendo conhecer pessoas influentes e citou o nome de um militar com alto poder hierárquico na época, também morador da quadra. A partir desse dado, a polícia montou um dossiê de 18 páginas com informações da data que ela ingressou no serviço público, com o número da matrícula e até mesmo com registro de portarias que ficaram sem efeito, mas nas quais ela é mencionada.
“Hoje, mesmo com a facilidade de informação que se tem em fazer um levantamento desses, ainda há dificuldades. Imagina naquela época. Então, havia um empenho para saber todos os detalhes da vida do cidadão”, destacou o pesquisador Marcelo José Domingos.
O historiador ressaltou que o informe também era usado como laudo, em que os próprios policiais diagnosticavam conforme queriam. O primeiro ponto do resultado do inquérito da moradora da Asa Sul define a mulher como “psicopata”. Na página 6, acrescenta que parece uma pessoa “evidentemente perturbada e uma infeliz”.
Impacto na carreira
Encontros entre amigos eram passíveis de serem monitorados a depender do caso. “Qualquer reunião de pessoas era motivo de vigiar. Havia um agente olhando e produzia um relatório com nome em um informe”, explicou o coordenador de projeto do repositório digital do Arquivo Público, o historiador Wilson Vieira Junior. Ele contou que era comum que os informantes se identificassem e catalogassem as pessoas presentes em eventos. “Isso ficava em um informe, podendo ser aberto um inquérito ou não.”
A depender da situação, o que constava no relatório poderia apresentar impacto na carreira pessoal. Em um arquivo classificado como confidencial, pedia o levantamento de alguns nomes para receber a Medalha da Ordem do Mérito Brasília, em 1984. Por ter participado de uma passeata estudantil em 28 de junho de 1968, uma pessoa indicada foi catalogada como contraindicada a receber qualquer condecoração. O relatório ainda informava que o indivíduo foi “identificado através de fotografias existentes”.
A “homossexualidade”, termo usado pelos militares na época, era considerada subversão para o regime autoritário. Um casal de pessoas do mesmo sexo também acaba fichado, e os dados ficavam registrados. “Em uma promoção no futuro, aquela informação constaria nos informes e poderia impedir ou dificultar progressões na carreira”, destacou o historiador e pesquisador.
Para o professor da Universidade de Brasília (UnB) e especialista em Ditadura Militar e luta armada, Carlos Hugo Studart Corrêa, ter mais de 70 mil pessoas fichadas no DF representa um número assustador. “É um trabalho de investigação muito maior do que imaginávamos.” Ele ressalta que a capital do país não tinha a luta armada e que é possível ter ocorrido injustiças nesse modelo.
“Era um tempo de extremos e se tentava preservar o poder pelas armas”, finalizou o docente.