POLÍTICA
O que é, afinal, “dialogar com a periferia”, como pediu Lula?

Feitas todas as considerações preliminares, indispensáveis nos dias que correm – de que não sou PT nem Bolsonaro, de que voto constrangido, de que respeito imensamente o mano Lula, de que isto é um texto de opinião (nome técnico: artigo) – é uma ideia inocente, generalizante, e ao final ofensiva pressupor que é possível, simplesmente, “dialogar com a periferia”.
É como se todos os problemas pudessem ser resolvidos a partir do momento que se conseguisse falar com o povão. O governo estaria salvo. Mas, afinal, falar o quê? E mais importante: vocês sabem dar o papo? Sabem explanar, chegar nas ideias? Sabem, sobretudo (como se diz no crime), dar a direção dessas ideias?
Sabe por que “dialogar com a periferia” é inocente? Porque vocês nunca vão pular o Muro de Berlim insuperável desse clichê comunicativo bem-comportado, professoral, bobinho, um prato insosso no qual falta o principal tempero: as palavras.
A gíria, o palavrão, a dicção do povão, a oralidade (repita mil vezes: oralidade), aquele flow que pulsa vivo e faz sentido pra quem é, só pra quem é – e não vou explicar o que é ser pra quem é porque quem é, sabe que é.
Aliás, não é “dialogar”, “falar”, “comunicar”, é “trocar umas ideia”. Vocês abrem a boca e nós tá ligado que vocês não tá ligado. E não estou ironizando Lula, o único que sabe falar. Vocês têm preconceito linguístico (dá-lhe Marcos Bagno, da UNB) e desconhecem o diálogo possível (dá-lhe Cremilda Medina, da USP).
Tem que entender, irmão, que pra falar não basta querer, não basta achar que sabe dizer, que tem boas notícias. E se eu não quiser escutar? E se eu não quiser escutar como faço, como fiz, como fazemos durante a transmissão da Voz do Brasil?
Vocês têm medo da língua, dos vários sentidos e usos da língua, vocês têm pudor de falar. Porque a língua viva é suja e vocês são limpinhos. Porque ela distorce e vocês estão super bem alinhados com este terno e calça social combinando com o sapato e a gravata. Vocês cheiram bem, têm todos os dentes, não têm mal hálito.
Isso sobre ser inocente. Sobre ser generalizante – é decorrente da ideia anterior – a suposta possibilidade de dialogar com a periferia pressupõe que existe uma única periferia, igual em todo o Brasil – imagina, no Brasil! – como se todo pobre, periférico, favelado, mano, mina, pastor, fosse igual. Não é, não somos; e nesse sentido, vocês estão tirando. Estão arrogantemente tirando.
Estão tirando porque acham que a periferia deveria ser de esquerda. Dói constatar que não é, não é mesmo? Vou encerrar com uma historinha, quase um segredo: fiz parte da revista Caros Amigos, de esquerda, esquerdíssima, mais que Exu, e tive a oportunidade de participar de algumas longas entrevistas com históricas lideranças de esquerda.
Não cito os nomes pra não queimar os manos e pra não alongar o texto, quer dizer, para não esticar o chiclete, tá ligado? Os referidos entrevistados contaram que, no início do PT, lá nos anos oitenta, os militantes batiam de porta em porta dando o papo, pondo a cara, dizendo que estavam fundando um partido de esquerda etc. e tal.
Segundo o relato de monstrões da esquerda (quase todos saíram do PT), o partido abandonou essa estratégia em prol de um rolê mais nos moldes político-partidários-eleitorais correntes. Paralelamente, os crentes continuaram batendo de porta em porta aos domingos, com a melhor roupa, em absolutamente todas as quebradas, aguentando desaforo e perseverando inabaláveis.
Bateram léguas de ruas de terra aguentando desaforo enquanto pretensos intelectuais achavam sinal de inteligência afirmar que Deus não existe. Os crentes continuaram dando o papo, e o que aconteceu? Construíram uma força política decisiva, que superou vocês.
Vocês que querem falar com a periferia têm que frequentar mais a igreja.
