RIO BRANCO
Autismo: histórias de mães acreanas que enfrentam o preconceito e a discriminação
O transtorno do espectro autista (TEA) é um distúrbio do neurodesenvolvimento que pode causar dificuldades na comunicação falada e não verbal, além de prejudicar a interação social e causar padrões de comportamento repetitivos. Pode ser classificado como nível 1, 2 e 3 (leve, moderado e grave), sendo necessário diagnóstico para determinar o tratamento terapêutico de cada pessoa.
As causas concretas do autismo ainda são uma incógnita para a ciência. Porém, estudos apontam que uma série de fatores genéticos e ambientais, combinados, colaboram para o desenvolvimento do autismo, como a idade dos pais, uso de entorpecentes, doenças autoimunes, infecções, baixo peso ao nascer, hipertensão e obesidade da mãe, antes ou durante a gravidez.
No mundo, segundo estimativas da Organização das Nações Unidas (ONU), existem mais de 70 milhões de pessoas com TEA. No Brasil, são dois milhões de portadores da síndrome. Já no Acre, o levantamento da Associação Família Azul (Afac) aponta a existência de 20 mil autistas. A incidência em meninos é quatro vezes maior em relação às meninas.
Esta reportagem especial da Agência de Notícias do Acre traz o relato de pais acerca das dificuldades enfrentadas no dia a dia, para que seus filhos tenham acesso à educação e saúde pública, e de casos de discriminação e preconceito ainda sofridos pelos autistas. Além disso, apresenta o trabalho e a luta do Ministério Público do Acre para garantir o direito das pessoas com TEA.
Na fila de espera por atendimento há mais de oito meses
O comportamento hiperativo, incômodo, com barulho, e a dificuldade no desenvolvimento da fala do pequeno Enzo Gabriel Martins começaram a chamar a atenção da irmã, que logo desconfiou que o garoto poderia ter o espectro autista. Rizenda Martins, mãe do menino, não desconfiava de nada.
Ao procurar o Centro Especializado em Reabilitação III (CER III), em Rio Branco, veio a confirmação. Enzo Gabriel foi diagnosticado com grau leve de autismo. Começou, a partir daí, uma saga para conseguir o acompanhamento adequado para o filho.
Após vários meses na fila de espera do CER III e sem nenhuma expectativa de atendimento, Rizenda agiu com o instinto de mãe para garantir mais qualidade de vida para o caçula. A dona de casa procurou um programa de TV para expor a situação.
Com a repercussão do caso na mídia, logo veio a resposta que ela tanto aguardava. O centro disponibilizou consultas periódicas com terapeutas ocupacionais e psicólogos. Porém, o tratamento do menino ainda não está completo.
Conforme indicação médica feita há dois anos, Enzo também precisa ser acompanhado por um fonoaudiólogo. Com 3 anos e 8 meses de idade, ele não tem a fala bem desenvolvida e pronuncia várias palavras de maneira incorreta.
A mesma situação se repete na Fundação Hospital Estadual do Acre (Fundhacre), também na capital. Para ter uma rotina menos agitada e uma noite de sono tranquila, Enzo necessita de medicamentos prescritos por um médico neuropediatra. Mas o menino aguarda o agendamento da consulta com o profissional há mais de oito meses.
“Inclusive, ele já está sem os remédios que precisa tomar. Essa medicação só é vendida com receita médica, e o médico me falou que o Enzo não pode ficar sem esses remédios. Nesses últimos dias, ele está bastante agitado e tem dormido pouco”, conta Rizenda.
“Diziam que ele era muito mimado”
Jamiles Ribeiro sentiu na pele o peso de ser mãe de um garoto autista. Antes do diagnóstico, o comportamento de João Kaleb de Oliveira era visto por muitos como o de uma criança mimada.
“O João chorava muito, não sabia aceitar um não, não interagia, não se comunicava e demorou a andar. As pessoas diziam que ele era muito mimado e eu sabia que isso não era verdade, porque a gente não criou ele dessa maneira. Toda vez que alguém falava aquilo, doía muito em mim”, lembra.
O diagnóstico de João Kaleb veio aos quatro anos de idade. Por não entender muito bem sobre o transtorno do filho, Jamiles relutou no começo e demorou alguns meses para aceitar a condição do menino.
E foi assim que aconteceu. Até então, João Kaleb não tinha nenhum acompanhamento especializado. Jamiles foi orientada a procurar o Centro Especializado em Reabilitação (CER), em Rio Branco.
Três vezes por semana, Jamiles e o filho, que moram no Bujari, percorrem cerca de 20 quilômetros até a unidade. O tratamento do garoto de oito anos de idade conta com atendimentos fonoaudiológicos e sessões de terapia ocupacional.
“Ele melhorou muito depois que começou a ser atendido aqui. O João era muito agressivo com o irmãozinho mais novo dele. Hoje não é mais. A fala dele e a interação com outras crianças também melhorou muito”, relata a mãe.
“O João só conseguiu vaga na escola depois que eu procurei o Ministério Público”
No Brasil, o artigo 205 da Constituição Federal assegura a educação como um direito de todos e dever do Estado e da família. Como mãe, Jamiles fez a parte dela. Porém, ao informar que o filho é autista, recebeu uma negativa como resposta ao pedido de matrícula.
O caso ocorreu na Escola Estadual Edmundo Pinto, no Bujari. Uma semana depois, ela retornou para verificar se a unidade de ensino tinha conseguido um profissional. Mais uma vez, a dona de casa se deparou com um não. Diante da inércia da instituição e do início do ano letivo, cada vez mais próximo, Jamiles recorreu ao Ministério Público do Estado (MPAC). Uma atitude certeira, que garantiu o direito do menino de ter acesso à sala de aula, como qualquer outra criança.
“Naquela mesma semana, a escola arrumou um mediador. Sou muito grata ao Ministério Público por ter ajudado o meu filho a conseguir uma vaga na escola. Sem não fossem eles, o João estaria em casa”, observa.
O caso de João Kaleb não é uma exceção. Somente este ano, o MPAC já ingressou cerca de 150 ações na justiça, pleiteando o acesso de crianças e adolescentes autistas à rede escolar.
“Na maioria das vezes, o poder público alega falta de mediadores em quantidade suficiente. Porém, entendemos que a Constituição precisa ser cumprida, pois a educação é um direito de todos”, afirmou a procuradora Gilcely Evangelista Souza, coordenadora do Grupo de Trabalho na Defesa dos Direitos das Pessoas com Transtorno do Espectro Autista (GT-TEA).
“Tive que trocar meu filho de escola porque ele estava incomodando”
Heloneida da Gama jamais esquecerá a situação vivenciada pelo filho autista em uma escola particular de Rio Branco. Na época, João Vítor tinha 7 anos e cursava a pré-escola I.
Ao ser aberta, a porta da sala de aula onde o garoto estudava fazia barulho e acabava assustando-o. Com audição bastante sensível, algo comum entre os portadores de TEA, João Vítor sempre chorava.
“Fui informada pela escola sobre o choro do meu filho e, quando soube do que se tratava, pedi para que consertassem a porta. Parecia algo simples, mas o meu pedido não foi atendido”, disse.
O choro de João Vítor passou a assustar um colega, que sentava ao lado dele. Certo dia, ao buscar o filho, Heloneida foi chamada pela direção do colégio para uma conversa não muito agradável.
“Eles começaram a perguntar como estava sendo o aprendizado do João. Diziam que o meu filho poderia estudar em lugar bem melhor. Achei a situação estranha, mas acabei relevando. Mesmo não querendo, porque gostava muito do colégio, acabei trocando ele de colégio. Pouco tempo depois soube de toda a verdade. O coleguinha que estava chorando era filho de uma pessoa importante”, relata.
Associação Família Azul confirma dificuldades
Há uma década, as histórias e situações vivenciadas no dia a dia uniram pais de autistas para lutar e fortalecer a causa. O que antes era um pequeno grupo começou a crescer e ganhar mais importância e visibilidade.
Em 2015, a criação da Associação Família Azul do Acre (Afac) foi oficializada e, hoje, conta com mais de 900 pessoas, entre associados e cadastrados. Heloneida é a atual presidente. Segundo ela, as dificuldades enfrentadas para que os autistas tenham uma melhor qualidade de vida são inúmeras.
No Acre, existem apenas quatro centros públicos especializados para cuidar da saúde dos portadores de TEA. Dois deles ficam em Rio Branco, um em Cruzeiro do Sul e outro em Tarauacá, quantidade considerada insuficiente, devido à alta demanda.
Nessas entidades, a procura por diagnóstico e atendimento terapêutico é elevada. No Centro Especializado em Reabilitação (CER), mantido pelo governo do Estado, cerca de dois mil pacientes aguardam na fila de espera. Já no Centro de Atendimento ao Autista – O Mundo Azul, da prefeitura da capital, quase 900 pessoas aguardam ser chamadas.
“A terapia é a ponta do iceberg. Sem ela, a criança não vai fluir na escola, não terá uma qualidade vida melhor quando chegar na vida adulta, sem contar o grande desgaste mental que o comportamento deles causa para a família”, frisa Heloneida.
“Ainda precisamos avançar muito. Outros estados do país possuem centros mais especializados e que são referência de atendimento pelo SUS [Sistema Único de Saúde]. Não queremos privilégios, buscamos mais qualidade de vida para essas crianças”, completa.
Na área educacional, a presidente também confirma a existência de vários autistas fora da sala de aula por conta da falta de profissionais capacitados para cuidar desses alunos, que precisam de acompanhamento especial.
“Temos muitas crianças sem mediadores nas redes municipal e estadual. A nossa luta é para que, no início do ano letivo de 2023, tenhamos mais profissionais disponíveis.
Ministério Público na luta contra a discriminação e garantia dos direitos dos autistas
Com o crescimento no número de diagnósticos e ineficiência no atendimento digno às pessoas com autismo, diversos pais procuraram o Ministério Público do Acre para ter o direito dos filhos assegurado, principalmente no acesso à educação e saúde.
Diante do aumento de novas ações e sensibilizado com a causa, o órgão decidiu criar, em maio de 2022, do Grupo de Trabalho na Defesa dos Direitos das Pessoas com Transtorno do Espectro Autista (GT-TEA).
A procuradora tem se empenhando, juntamente com sua equipe, no acompanhamento de diversos casos. Segundo Gilcely Evangelista, nenhum autista deve ser discriminado por sua condição. “Isso é inaceitável e o Ministério Público tem assegurado a missão constitucional de zelar e defender o direito dessas pessoas, que merecem uma vida digna”, afirma.
O principal objetivo da comissão é acompanhar, fiscalizar e implementar ações necessárias, visando à defesa e proteção dos direitos dos autistas, permanentemente, em todos os 22 municípios acreanos.
O GT-TEA conta com o apoio de equipes do Centro de Apoio Operacional de Defesa da Criança, Adolescente, Educação e Execução de Medidas Socioeducativas; do Centro de Apoio Operacional de Defesa da Saúde, Pessoa Idosa e Pessoa com Deficiência; do Núcleo de Apoio Técnico (NAT); do Núcleo de Apoio e Atendimento Psicossocial (Natera); do Núcleo de Apoio Técnico Especializado da Criança e Adolescente (Nateca); e do Centro de Atendimento à Vítima (CAV).
MP realizará primeiro censo do país para contabilizar população autista do Acre
Em 2023, o Ministério Público deverá fazer história na defesa das pessoas com autismo. Pela primeira vez no Brasil, um amplo levantamento será realizado em todas as cidades do estado, para saber o número atual da população com TEA.
A necessidade surgiu a partir da constatação do MPAC sobre a total ausência de dados sobre esse público. Apesar de ser uma comunidade expressiva, o poder público, até o momento, não possui estatísticas oficiais. A falta de números prejudica a implementação de importantes políticas públicas, principalmente no interior do estado.
“Esse levantamento será fundamental para implementarmos políticas públicas, além de trabalharmos na criação de uma rede de apoio, em que os conselhos municipais de educação e saúde possam lutar pelos direitos dos autistas”, afirmou a procuradora Gilcely Evangelista.
Lugar de autista é em todos os lugares
Outra ação desenvolvida pelo órgão foi o lançamento da campanha Lugar de autista é em todos os lugares – discriminação é crime, inclusão é o caminho. Além do GT-TEA, a iniciativa conta com a participação do Centro de Apoio Operacional de Defesa da Saúde, Pessoa Idosa e Pessoa com Deficiência.
Promover a conscientização e disseminar informações sobre os direitos das pessoas com transtorno do espectro autista com familiares e a sociedade é o grande desafio do Ministério Público acreano.
Para a presidente da Associação Família Azul, o MP é um importante aliado nessa luta pelo fim do preconceito e da discriminação. “O Ministério Público tem sido um grande parceiro dos autistas e já conseguimos avançar muito. Muitas das nossas conquistas se devem à atuação dessa instituição, que busca fazer justiça”, observa Heloneida.
O exemplo vem de casa
Bruna Sampaio sempre foi uma menina bastante calada e pouco interagia com outras pessoas, principalmente na infância. Mesmo apresentando sinais de uma pessoa com autismo, na época as informações eram escassas e os diagnósticos praticamente não existiam, assim como profissionais especializados.
O comportamento de Bruna era o gatilho para que outras crianças da escola em que ela estudava praticassem bullying, palavra de origem inglesa que corresponde a atos de humilhação, agressão e intimidação contra uma pessoa não aceita por determinado grupo.
“Já me empurraram da escada, esconderam meu material e tentaram me trancar no banheiro”, relembra. As discriminações a acompanharam até a fase adulta. “Passei por situações constrangedoras, praticadas por alguns colegas da faculdade, durante o meu estágio. O meu ex-chefe praticava condutas que poderiam ser enquadradas como assédio moral”, relata.
Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Acre (Ufac), Bruna fez história ao ser a primeira autista contratada pelo Ministério Público. Desde agosto, a profissional atua como assessora administrativa do Centro Operacional de Apoio de Defesa da Saúde, Pessoa Idosa e Pessoa com Deficiência, dando sua contribuição para que outras pessoas, assim como ela, tenham seus direitos resguardados.
A inserção de Bruna no mercado de trabalho não foi nada fácil. Ela concluiu a faculdade em abril de 2018, mas conquistou seu primeiro emprego mais de quatro ano depois. A advogada defende o fortalecimento de políticas públicas para que os autistas tenham mais oportunidades laborais.
“Eu costumo dizer que os autistas adultos são um grupo invisível dentro de um grupo já negligenciado. Muitas vezes, os direitos dos autistas são desrespeitados, e os autistas adultos não são nem lembrados. Precisamos mudar a atual realidade e trazer mais inclusão. Por isso, é primordial pensarmos na conscientização, na visibilidade e buscar, como sociedade, maiores e concretas medidas para inclusão de autistas adultos, e a inserção no mercado de trabalho é uma delas”, analisa.
A dedicação dela é reconhecida no ambiente de trabalho. De acordo com Iracema Moreno, assessora ministerial e colega de Bruna, a advogada tem feito a diferença na instituição. “A Bruna é uma menina muito esforçada em tudo que se propõe a fazer. Para nós, como equipe, tem sido um aprendizado constante ter a oportunidade de trabalhar com uma pessoa que tem TEA”, relata.
O outro lado
Procurado pela reportagem, o Centro de Atendimento ao Autista esclareceu, por meio de nota, possuir equipe multiprofissional destinada aos cuidados de pessoas com transtorno do espectro autista, oferecendo terapias que auxiliam no processo de desenvolvimento da criança, visando autonomia, comunicação, interação social e novos aprendizados.
Em janeiro de 2021, a gestão municipal assumiu o centro, com 28 crianças. Foram feitos investimentos na contratação de novos profissionais, organização do processo de trabalho, dobrando o número de vagas e chegando a atender 65 crianças até o fim de 2021. Atualmente, são 143 meninos e meninas atendidos, quantitativo que representa a capacidade máxima do local.
Sobre a fila de espera, o registro do Sistema de Informação G-MUS, da prefeitura da capital, possui 891 usuários aguardando atendimento. A nota confirma, ainda, um aumento constante de novas crianças diagnosticadas com TEA e, consequentemente, a procura de terapias multiprofissionais, sendo que a maioria das famílias não possui condições socioeconômicas para buscar uma clínica particular.
A gerente-geral do CER III, Ana Luiza Vasconcelos, confirmou a existência de mais de dois mil pacientes na fila de espera por atendimento especializado. Ela explicou o motivo da grande demanda.
“Todos os dias novos diagnósticos surgem e os pais, consequentemente, nos procuram. Apesar de termos toda uma estrutura e 38 profissionais à disposição, atendemos um quantitativo de pacientes de todo o estado, que é muito alto”, alega.
Por semana, o centro realiza 840 atendimentos, nas áreas de terapia ocupacional, fonoaudiologia, psicologia, medicina da família, genética, neuropediatria, enfermagem e fisioterapia.
De acordo com Ana Vasconcelos, já existem tratativas para aumentar a capacidade de atendimento. “Essa é uma das soluções para diminuirmos a fila de espera. O governo do Estado e a Prefeitura de Rio Branco estão discutindo parcerias para a implantação de novos centros especializados”, salienta.
A Fundhacre, por sua vez, explica que os médicos neuropediatras contratados para a unidade são de outros estados do país e esses profissionais prestam atendimento durante quatro dias do mês. Diante dessa dificuldade e da grande procura, no momento não há vagas disponíveis, sendo necessário entrar na fila de espera.
Em relação à falta de mediadores na rede estadual de ensino, o secretário de Educação, Cultura e Esportes, Aberson Carvalho, disse que mais de 1,2 mil profissionais foram contratados, temporariamente. O gestor negou a falta destes servidores e explicou que todos os estudantes são avaliados sobre a necessidade de acompanhamento pedagógico específico.
“Estamos tendo um grande volume de diagnósticos e, muitas vezes, sendo laudados de forma muito superficial. Não estamos questionando a autoridade médica, mas a autoridade pedagógica também precisa ser validada. Nem todo autista tem a necessidade de acompanhamento de mediadores”, declara.
Aberson Carvalho também confirmou a implantação, no próximo ano, de um centro especializado que será referência para a educação especial. “Em um mesmo local, teremos médicos, psicopedagogos e psicólogos, entre outros profissionais, para que possamos criar o projeto de vida do aluno”, informa.
A Secretaria Municipal de Educação de Rio Branco (Seme) também foi questionada sobre o déficit de mediadores, mas até a publicação desta reportagem não se pronunciou.